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Desigualdade. A chave para a revolta global

Ao longo do ano passado, foram milhões os que saíram à rua para protestar por uma mudança profunda dos sistemas que pretendem denunciar. Os pontos comuns de uma explosão popular que aqueceu o mundo.

Fotografia: Chris McGrath/Getty Images

2019 foi, indubitavelmente, o ano do protesto. Em todas as suas formas, as ruas encheram-se daqueles que, independentemente da razão, fizeram-se ouvir em reivindicações políticas, económicas, sociais ou até mesmo climáticas. Apesar da distância geográfica que separa todos estes povos, há fatores comuns aos protestos que, ao longo de doze meses, agitaram o mundo, numa clara denúncia aos que detêm o poder para reverter o panorama.


Ao redor de todo o mundo, foram muitas vezes motivos aparentemente mais pequenos que despoletaram a fúria popular. Em Hong Kong, a possibilidade de aprovação de uma lei de extradição para a China levou a protestos nunca antes vistos a favor da democracia; no Líbano, a execução de uma taxa sobre chamadas na rede social Whatsapp mobilizou milhares em contestações pela corrupção e austeridade no país; no Chile, o aumento dos preços do metropolitano da capital despoletou a revolta por mais investimento público; no Brasil, os incêndios devastadores na Amazónia pediram maior proteção ambiental. A lista continua, é extensa e os locais díspares, somando-se tumultos e contestações em cidades de países como a Venezuela, a Bolívia, a Índia, a Síria, a Palestina, a Argélia, a Rússia, o Reino Unido ou Espanha.


Mas, entre todas estas demonstrações de revolta popular, há fatores que as ligam intrinsecamente. O descontentamento perante as elites políticas, em muitos destes locais consideradas corruptas, reforça o desesperante clamor pelo fim da desigualdade, por uma mudança no sistema atual e global. A desobediência civil parece ser a forma mais eficaz que as populações encontraram para abordar frontalmente aqueles que os governam, fruto de uma crescente desilusão na democracia (ou na falta dela), pela corrupção em muitos casos ilimitada, pela iniquidade que do dinheiro provém - segundo a Oxfam, comité para a pobreza e desigualdade mundiais, os mais pobres todos juntos têm tanto dinheiro quanto a reduzida classe abastada (de apenas 26).


A chama está a ser acendida, sobretudo, pelos mais jovens. É familiar o envolvimento dessa camada em protestos como os realizados pelo ambiente, cuja esmagadora maioria dos participantes tem menos de 25 anos. Só que, noutros assuntos, é igualmente esta faixa da população que apregoa firmemente o seu desagrado com o estado atual, aquele em que vivem e em que viverão os seus descendentes se nada for alterado. Estas populações jovens querem, assim, que lhes seja permitido realizar as suas ambições e não pretendem parar até que este direito lhes seja atribuído em plenitude.

Fotografia: Sofia Matos Silva

A prova está no ensino: segundo dados do The Times e do The New York Times, em todos os países onde decorreram manifestações em massa nos últimos meses, o Ensino Superior registou recordes no número de alunos que frequentam as Universidades locais. Entre 1980 e 2016, as inscrições em estabelecimentos de ensino passaram de 18% para 90% no Chile; 25% para 46% no Equador; 15% para 64% no Egito; 34% para 64% em França; de 13% para uns impressionantes 72% em Hong Kong.


Esta vaga de manifestações é, no entanto, o prolongar de uma tendência em crescimento. Nas últimas décadas, assiste-se a um cada vez maior número de protestos pelas mais variadas razões, o afeiçoar da sociedade ao seu direito de levantar a voz perante aquilo que os deixa descontentes - afinal, muitas revoluções preponderantes na História do mundo partiram, precisamente, de revoltas em que o objetivo primário era que todos se fizessem ouvir. Só que, por mais que os movimentos se desenvolvam, o triunfo é cada vez menor; Erica Chenoweth, politóloga de Harvard, revelou ao The New York Times dados de um estudo que revelam que se há 20 anos cerca de 70% das manifestações atingiam os seus objetivos, hoje em dia apenas 30% o conseguem.


As razões são várias. Uma delas, a notória falta de liderança específica em protestos, que os torna, por um lado incontroláveis; por outro, demonstra a espontaneidade com que surgem e a necessidade que aqueles que neles participam têm de se fazer ouvir por cima do descontentamento. Só que, apesar de uma menor percentagem de sucesso deste tipo de manifestações, é notório, por outro lado, um maior efeito prático em casos específicos, que mostram que a população começa a cumprir a sua parte na tentativa de mudança.

DR

Por exemplo, líderes de países como a Argélia, o Sudão ou a Bolívia demitiram-se depois da revolta popular; a China desistiu da aplicação da lei de extradição em Hong Kong; leis impostas no Chile ou no Líbano acabaram por ser destituídas. Aumenta-se assim a consciência e impacto político que a revolta global acarreta de forma inerente.


A explosão vivida ao longo dos últimos doze meses é, provavelmente, a ponta do icebergue no que toca à expressão do que é preciso mudar, um sintoma do desejo de profundas alterações no seio político, social e económico para que os sistemas que reproduzem a iniquidade se reformem profundamente. A fúria da população é certeira, violenta e, acima de tudo, inflamável. Assim, o mundo aqueceu.

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