A Roma de Alfonso Cuarón
- Sofia Matos Silva
- 21 de nov. de 2019
- 3 min de leitura
Atualizado: 13 de jan. de 2020
Roma é um convite a abrandar o ritmo.

Roma é a verdadeira obra-prima. É um filme que toda a gente deveria ver, mas, paradoxalmente, é um filme que não é para toda a gente.

No século XXI, estamos habituados a um ritmo frenético e desgastante. A correr de um compromisso para o seguinte, sem parar dois segundos para pensar no que estamos a fazer. Roma é um convite a abrandar o ritmo. O filme de Alfonso Cuarón tem um ritmo próprio e só seu. As cenas demoram o tempo que precisam - nem a mais, nem a menos. Afinal, o enredo passa-se em 1970 e 1971, e não nos tempos atuais. Para quem apenas vê filmes de ação ou thrillers… bem, pode desistir após os primeiros cinco minutos, e perder uma das produções mais sublimes dos últimos anos.
“Manifestaram-se três elementos quando surgiu a ideia de realizar este filme. Um era o de fazer um filme sobre a Cleo real; outro processo seria apresentar memórias, ou seja, recuperar os momentos e filmá-los nos locais e espaços reais; e outro elemento era filmar a preto e branco”. Roma é um filme semi autobiográfico. Acompanha a história de uma criada e da família para a qual trabalha ao longo de um ano - um ano bastante atribulado.

Nos modelos de cinema atual, a maior parte das histórias contadas são sobre pessoas extraordinárias, que salvam o mundo sem reclamar crédito ou exigir algo em troca, com poderes sobrenaturais ou que vivem romances de fazer suspirar os mais insensíveis. São poucos os que decidem retratar as vidas dos anónimos. Esse é outro pormenor que atribui a Cuarón um grande mérito. Cleo é apenas uma jovem criada, descendente das tribos nativas. Os seus patrões são uma família da classe média com quatro filhos, que vive no bairro Roma, na Cidade do México. Não são cruciais para o país nem para o mundo. São pessoas, simplesmente.
Roma foi apresentado em agosto de 2018. Em dezembro, a Netflix iniciou a distribuição do filme com direitos exclusivos – revolucionando, assim, o mundo do cinema. Cuarón é um realizador que sempre se destacou por ter o dom de contar histórias de todas as maneiras possíveis. Este filme de 135 minutos funciona como o seu espetáculo a solo: escreveu o argumento, realizou, produziu, filmou e foi diretor de fotografia.
Os planos de Roma são de cortar a respiração. Mesmo as cenas mais pesadas a nível emocional – que são muitas – conseguem manter uma beleza única. Os movimentos de câmara de 180 e 360 graus permitem ao espetador uma experiência de imersão quase total na narrativa. É como se estivesse no México, de volta às memórias de Cuarón e à sua homenagem a “quem o ajudou a crescer”.

Yalitza Aparicio foi a escolhida pelo realizador para assumir o papel de Cleo. No entanto, Yalitza não tem qualquer experiência ou formação em representação anterior a Roma. Este facto torna a sua atuação ainda mais surpreendente e arrepiante. Cleo é uma mulher a quem a própria vida não pertence. A sua existência resume-se a servir as necessidades da família; a sua sorte na vida pessoal é ainda pior. As dificuldades por que passa, o sofrimento e o trauma, derrotariam a mais forte das mulheres. Mas Cleo não desiste de lutar por si. Sofía, a mãe da família, acaba também por mostrar coragem: consegue mudar de vida e superar as dificuldades deixadas pelo marido, para poder dar a melhor vida possível aos filhos.
Apesar de não o ser explicitamente, Roma acaba por ser um marco na defesa dos direitos das mulheres - “We are alone. No matter what they tell you, we women are always alone”, uma das grandes citações do filme - e dos mexicanos. Estas vidas anónimas representadas ganham uma importância redobrada no contexto político atual. Roma é uma produção repleta de simbologia e mensagens.

“Primeiro escrevi tudo em papel, numa livre associação de ideias e sem as questionar. Depois, quando comecei o processo de produção, tive de garantir que conseguia os elementos que queria. Quantas pessoas têm a oportunidade de recriarem a infância?”. Roma deveria ter sido O filme dos Óscares de 2019. As suas 10 nomeações incluíam a de Melhor Filme – categoria na qual se assumia como o único 100% merecedor do título. Ganhou os Óscares de Melhor Realizador, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Fotografia, mas perdeu o de Melhor Filme para o Green Book de Peter Farrelly. Posto isto, o melhor a fazer é mesmo continuar a admirar Roma e tudo o que representa.

Comments