Especial Melhores de 2019: Séries
- Tiago Serra Cunha
- 16 de jan. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 17 de jan. de 2020
2019 foi um ano de excelência cultural... Perdemo-nos por entre notas musicais e diálogos de séries, composição fotográfica e planos cinematográficos, tecidos invulgares e as multidões de concertos. Perdemo-nos, mas encontramo-nos também. Agora, queremos partilhar estes novos pedacinhos de nós com todos os que nos quiserem ler. Porque a arte existe para ser partilhada e a beleza está e todas as coisas - basta olharmos com atenção.

O ano começou, decorreu e terminou com vários pontos altos, momentos televisivos de grande qualidade. Não é algo novo, exceto talvez a frequência com que começa a acontecer. O maior desafio para a televisão em 2019 foi, precisamente, sobressair-se perante si própria numa época em que falar em peak tv faz mais sentido do que nunca.
Com oferta elevada, há o risco do conteúdo se afundar entre os seus pares. Esse medo cria, por outro lado, o desafio de superação que a TV agarrou com distinção. Fez das dezenas de formas de a ver um showcase do que de melhor se faz mundo fora, com os grandes mercados a tornarem-se ainda maiores e cujo selo de aprovação se torna cada vez mais dourado.
O drama de um meio sobrecarregado torna quase impossível a distinção por lugares específicos do que melhor se fez no ano. São tantos os conteúdos, tão distintos entre si, que acabam por satisfazer locais muito diferentes da necessidade cultural dos seus espectadores. A camada apelativa das muitas séries televisivas que têm dado que falar fazem com que a TV se esteja a tornar, cada vez mais, o que cinema representa na sua essência.
2019 foi, assim, um ano de histórias intrínsecas, complicadas, outras nem tanto, para todos e para todos os gostos. Foi, também, o ano de grandes despedidas. Game of Thrones foi uma das séries que mais deu que falar nos últimos anos, tornando-se, provavelmente, o produto televisivo mais desejado da história; o final, aguardado em grande expectativa, ficou aquém nas de muitos. O final foi tudo menos consensual, mas a verdade é que esta conclusão tem um mérito próprio, as decisões que a moldaram a desviar-se do que se esperava e a entregar, com distinção, uma experiência audiovisual sem precedentes no meio televisivo.
Críticas e decisões aparte, a ambição de Game of Thrones marca uma era, que terminou e ao mesmo tempo começou com a exibição do seu último episódio. Terminou porque não se sabe quando se repetirá esta canção de gelo e fogo; começou porque o toque de midas posto numa produção destas permitiu e continua a permitir, até a obrigar, que este legado passe para produções que, mesmo que não se tornem neste sucesso sem fim, criem o seu, próprio e específico.
Despedidas não só de GOT mas, também, de uma das comédias geek mais queridas dos últimos anos. The Big Bang Theory chegou ao seu fim depois de uma bonita jornada de 12 temporadas, precisamente 12 anos depois da estreia. Uma duração justificada, mas de uma série que já pedia descanso e cujo final deixa mais uma vez marcado que o advento das sitcoms tradicionais parece estar a chegar ao fim, substituídas por novos tipos de comédia que não precisam de laugh tracks para fazer rir e elevam a um outro patamar o conceito de comédia de situação. Este ano, viram-se coisas como a quarta temporada da genial The Good Place ou a terceira da adorável Atypical, duas séries de aguçado timing comédico.
Mas, se de comédia se fala, não se pode deixar de parte aquela que é uma das surpresas do ano e, provavelmente, do melhor que se fez em televisão. Fleabag é quase um evento único em duas temporadas, uma vez que a sua criadora e protagonista, Pheobe Waller-Bridge, já disse que a trama ficou por ali. E já tivemos sorte em ter uma segunda parte da história porque, até Pheobe ceder, apenas a primeira, de 2016, iria existir, adaptada diretamente da peça de teatro com o mesmo nome que criou anos antes. E ainda bem que cedeu: a segunda e última temporada de Fleabag é amor e ódio, riso e destroços tudo dentro de um saco, embelezado exteriormente na figura de um padre sexy (um dos personagens mais dinâmicos desta temporada) que nos faz questionar o que achamos saber sobre os devotos da religião.
As discussões são reflexivas, porém digeríveis. Fleabag é, provavelmente, um dos produtos televisivos mais eletrificantes, devastadores e, ao mesmo tempo, hilariantes dos últimos anos. Salve, Pheobe Waller-Bridge, que também escreveu Killing Eve, outra das séries mais cativantes dos últimos tempos e que este ano teve uma segunda temporada genialmente deliciosa ao continuar a juntar o macabro com o inesperado, com uma obsessão, com o riso, com tudo. Um novo talento a ter debaixo de olho (por exemplo, no próximo filme de Bond, em que fará parte da equipa de escritores).
As mulheres complexas em comédias dramáticas igualmente labirínticas não se ficaram na obra-prima de Waller-Bridge e, em 2019, Natasha Lyonne também criou e protagonizou o seu woman-show em Russian Doll. Foi esta a série que iniciou o ano televisivo em mais uma vitória da Netflix, que ao longo dos últimos anos se tem afirmado uma das produtoras com selo de qualidade quase garantido, desembrulhando a matrioska de recantos naquilo que a TV tem para oferecer. Ou, tirando-se o advento da comédia, as histórias duramente reais das mulheres de Monterey. A segunda temporada de Big Little Lies, mesmo sem um grande mistério por revelar, tem o seu trunfo na exploração mais funda e dura dos sentimentos das cinco mulheres e a forma como lidam com as consequências dos seus atos.

Este tom introspetivo, que se cola ao misterioso, correu alguns dos melhores frutos da colheita do penúltimo ano da década. Em produções grandiosas, explorou-se a história real em traços de ficção com Chernobyl, da HBO, que rapidamente se tornou uma das mais bem classificadas do ano e entrou, também, na lista das melhores de sempre. Em cinco episódios, mostrou-nos de forma nua e crua as consequências do pior desastre nuclear da História, tema que voltou a ser comentado na altura certa. Toca profundamente e avisa que nós, enquanto seres humanos, temos o poder de, com ou sem consciência, mudar o curso das vidas de todos.
Avisos para um amanhã mais assustador reforçados em Years and Years que, ao estilo de Black Mirror (uma das favoritas de outros anos), mostra um olhar do lado contrário do telescópio ao nosso mundo atual, com sucessivos avanços temporais que amplificam a sensação tão familiar de tumulto, um retalho de liberdades e direitos, numa conclusão quase bíblica, estranha e inesperadamente humana.
Ou, para além da reflexão sobre a nossa realidade, a descoberta de presentes, passados e futuros paralelos, com direito a viagens no tempo, em performances de excelência — DARK, série alemã da Netflix, pode quase ser considerado um produto de nicho; não fosse uma série europeia, mercado que ainda está a ganhar lentamente o seu espaço entre as produções das gigantes máquinas americanas e inglesas, teria certamente mais atenção, mas não se lhe pode retirar o mérito. Em argumento de um nó mental garantido, é difícil de ver, mas impossível de parar. De parar de ver, efetivamente, mas também de tentar entender. Sem dúvida, uma das melhores séries que se fez nos últimos anos, que reflete a tendência na aposta em histórias quase mitológicas, dos e ses, que encontram em produtos como The OA, injustamente cancelada na segunda temporada quando foi planeada para ter cinco, a miragem do desconhecido.
De nó mental em nó mental, Mr. Robot também se despediu do pequeno ecrã depois de quatro temporadas. Se ao longo dos anos levantou inúmeras questões que todos ansiavam ver respondidas, evita a armadilha da incógnita e conclui a sua história sem responder a tudo, mas a esclarecer o essencial. A quarta temporada traz novas camadas, literais e metafóricas, aos protagonistas, numa série que não se deixa cair no previsível. Viver na mente de Eliot é uma aventura que permite a Mr. Robot brincar com o Cinema e testar os limites da arte de fazer televisão.
O advento das séries que fazem pensar continua em força e tem oferecido tramas bíblicas que jogam com o que é ser-se humano, nos bons e nos maus momentos. Como Mindhunter, que numa intrincada segunda temporada continua a explorar, a par com eventos como The Act (história real igualmente macabra), os mais obscuros recantos da mente humana; ou, do que é bem nosso, Sul, um policial noir embalado pela Lisboa da troika, aquela que quase se engoliu na sua própria sobrevivência, antes dos airbnb sem fim. Mutações de roteiro que casam na perfeição, em contraste, com os milionários de Succession ou a mitologia remisturada do novo Watchmen. Contradições, revolucionárias, que se complementam.
Não fosse 2019, a par com a atitude de transformação que percorre a sociedade atual, as camadas mais jovens rebelam-se contra os sistemas, em lutas incessantes por causas tão distintas. Essa vontade em ser-se mais extrapola-se para o ecrã, em odes à juventude, à diversidade e ao espírito do que é viver como faz Euphoria. A série que causou furor por romper com padrões, normalizando a diferença e extinguindo categorizações, e cenas com 71 pénis sem censura; é este contraste entre banal e profundo que traz à série protagonizada por Zendaya, embalada numa estética independente e quase nostálgica, uma camada emocional subtil e premente nas discussões que levam esta era ao colo.
E ainda haveria muito por falar: a épica terceira temporada de Stranger Things, Unbelievable, Orange Is The New Black, BoJack Horseman. Rolam os créditos de mais um ano recheado de boa televisão, mas que chega a ser overwhelming; é a era que obriga à seleção criteriosa do que queremos ver, da união pelo streaming que, com tanto para ver, faz o planeta disperso na quantidade de escolhas. A televisão está em mudança, mesmo com o advento de velhos favoritos; é cada vez mais internet, cada vez mais aquilo que se quiser. E, talvez por isso, uma fonte a caminho de ilimitada de uma transfusão de artes, injeção de sentimentos premonitórios que adivinham as experiências do amanhã.
Que 2020 assim seja. Sem limites.
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