João Ferreira: "Vamos estar a viver sempre em retrocesso"
- João Malheiro
- 22 de out. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 28 de dez. de 2019
O Ponto e Vírgula conversou com o Diretor Artístico do Queer Porto. Um diálogo sobre o festival de Cinema, a Comunidade Queer e as lutas que ainda têm de ser travadas.

A quinta edição do Festival Queer Porto terminou no passado fim-de-semana. Para trás ficam vários filmes e iniciativas que celebraram a Comunidade Queer. Madame foi o grande vencedor, arrecadando tanto o Prémio do Júri como do Público.
João Ferreira é o responsável pela direção artística e programação do evento. O Ponto e Vírgula teve a oportunidade de entrevistar o Diretor do Queer Porto antes da Sessão de Encerramento do festival. A conversa realizada no Teatro Municipal Rivoli debruçou-se sobre o festival que João coordena, os 50 anos de Stonewall e as lutas que a Comunidade Queer ainda tem de travar no mundo atual.
Ponto e Vírgula: Quais os principais desafios do evento este ano?
João Ferreira: Os desafios principais são sempre os da programação. Perceber quais são os filmes que possam fazer sentido e escolher algumas linhas temáticas. Este ano foi, relativamente, fácil, por termos as celebrações dos 50 anos dos motins de Stonewall. As atividades acabaram por girar à volta desse efeméride. Para perceber o que significaram estes 50 anos no Cinema Queer e em termos de ativismo.
Qual é o balanço que faz desta 5ª edição?
Tenho sempre dificuldade em fazer balanços (risos). Há uma coisa que posso avançar que é a reação muito boa do público aos filmes. Dizerem que gostaram, que foi importante, que ficaram supreendidos. Não conheciam aquela história ou realidade. Isso é o mais importante, é o Cinema ter um significado para as pessoas.

Quais os benefícios de ter o festival dividido por vários espaços?
É bom por vários motivos. É bom para nós como programadores, porque nos desafia mais. Temos de pensar em diferentes filmes e conteúdos para diferentes espaços. Outra questão importante é a presença em vários pontos da cidade, que vão ao encontro de públicos diferentes. Por exemplo, ao ter a Reitoria e ter o Maus Hábitos estamo a chegar a dois públicos diferentes. Um mais académico, outro mais noturno e com uma grande tradição de artes performativas.
"As conquistas de direitos e liberdades das comunidades Queer não estão de forma alguma garantidas."
Confirma-se uma sexta edição?
Sim, está confirmada.
Haverá uma mudança ou crescimento?
Não, o formato não vai ser distinto, até porque o orçamento será igual ao de este ano, à partida. Os espaços queremos manter, assim como o formato. Temos de olhar para a edição deste ano e fazer um balanço. Pensar em que é que devemos investir mais e em que tipo de programação.
Esta edição assinala os 50 anos de Stonewall, como mencionou. Que lições se podem retirar hoje e como é que o mundo mudou desde esse tempo?
O mundo mudou muito. Mudou para melhor e para pior. Um das coisas que este tipo de Cinema fala é destas conquistas de direitos e liberdades das comunidades Queer não estarem de forma alguma garantidas. Esta é uma lição destes 50 anos. Temos de estar sempre alerta, porque a qualquer momento os direitos podem ser privados e voltar a viver tempos tenebrosos. Aliás, já se está a assistir em vários cantos do mundo, como é o caso dos Estados Unidos, por exemplo. Outra reflexão que podemos fazer a partir de Stonewall é da própria diversidade da comunidade Queer. Nesse sentido, o evento em si é emblemático. Houve uma tentativa, durante muitos anos, de tornar aquilo uma história de homens gays brancos de classe média. Essa imagem prevaleceu durante décadas, quando na verdade não foram eles os pioneiros de Stonewall, foram drag queens negras. Começaram e tiveram a coragem de enfrentar a polícia. É uma luta que ainda tem de ser feita e está longe de ser justa. Para termos uma diversidade saudável e respeito dentro da comunidade e depois passarmos essa mensagem para fora dela.

A luta continua para termos uma sociedade mais inclusiva.
Com certeza. Nós vamos estar a viver sempre em retrocesso. Podemos conseguir conquistar alguma coisa legislativa, mas depois há tudo o resto. Há a sociedade e a sua série de fatores, políticos, sociais e religiosos, que vão evoluindo para bem ou para mal. Às vezes, perguntam-me se acho ideal um dia deixar de haver um festival de Cinema Queer. Digo sempre que não, porque os tempos nunca serão perfeitos. Vai existir sempre um Cinema ou uma Arte a refletir sobre esses problemas.
Vale sempre a pena celebrar isso.
Claro.
"A Arte foi um veículo fundamental de sobrevivência."
Qual a importância de o fazer com um festival na cidade do Porto?
Estes festivais, em termos mundiais, cresceram sempre em meios urbanos. Há outras formas em localidades pequenas, mas é uma questão prática de onde existem mais meios. Às vezes, há uma ideia errada do Festival não chegar ao resto da população por estar no Porto ou em Lisboa. Nós temos um país pequeno, onde é fácil as pessoas deslocarem-se e assistimos esses casos de pessoas que são de zonas arredor às cidades e vão ao festival na mesma.
Como está o Porto em relação ao respeito pela comunidade Queer e os seus direitos?
Acho que a nível nacional as coisas melhoraram muito. Agora, há, obviamente, diferenças de Norte para o Sul, mas não são de agora. No Norte há um conservadorismo e uma tradição católica muito maior que eu não experimentei no Algarve, de onde sou. São meios diferentes. Lisboa acaba por ser uma bolha, já que é a capital e tem uma diversidade populacional. Isso traz um multiculturalismo diferente que não existe tanto no Porto. As coisas caminham de forma diferente. Agora, não consigo dizer se é melhor num local ou noutro. É diferente e essas diferenças também são importantes. Faz com que as comunidades apareçam e reajam e criem, consoante o meio onde se inserem. No Porto, em termos de artes performativas, há criações que arriscam e trasgridem mais do que em Lisboa. Se calhar, é um fenómeno em reação ao meio mais conservador.
A Arte foi sempre uma plataforma para a comunidade Queer se expressar.
A Arte foi um veículo fundamental de passar mensagens. Foi um veículo fundamental de sobrevivência. Muitas vezes foi a única forma de expressão de comunidades e até de indivíduos, que se encontraram e compreenderam a sua sexualidade e de desejo através das suas criações. A Arte tem sempre esse poder de comunicar e de transformar quem a cria e quem a experencia. É uma forma priveligiada de integração e liberdade.
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