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O espírito do metro

A cada paragem risco um traço mental na contagem das que ainda faltam, como um prisioneiro que conta os dias que já passaram para não perder a noção do tempo.


Fotografia: Sofia Matos Silva

Acordo às sete da manhã para um dia de chuva, daqueles em que é impossível não querer ficar na cama. Arranjo-me até ter um ar decente, bebo uma caneca de café e como uma torrada a correr, enrolo-me a mim própria no casaco e à mochila no impermeável e saio de casa. É um daqueles dias com tanto vento que é impensável pegar num guarda-chuva - bem típico do litoral e, particularmente, de Vila do Conde. Faço os dez minutos até à estação da Varziela em passo rápido, passando pelas casas sem ser sequer vista, como um espírito que vagueia pelo nevoeiro – porque só mesmo um espírito sairia à rua num dia destes.


A plataforma da estação do metro está cheia como um bote salva-vidas. As pessoas juntam-se para afastar o frio e impedir as gotas impiedosas de chuva de entrar. O metro chega com todos os lugares ocupados, bem como os espaços nos corredores e os lugares junto às portas. Restam os espaços que eu chamo de átrios, em que os viajantes ficam condenados a uns incómodos 40 minutos de pé sem apoio até ao Porto. Já vi este cenário muitas vezes. Aliás, nos últimos três anos, foram mais as vezes em que viajei em metros sufocantes do que o contrário.


Preferia ler o meu livro, se pudesse. Sem apoios, ouço música para tornar a deslocação mais suportável. A carruagem vai continuando a encher, as pessoas entram umas atrás das outras, num transporte público que constitui uma fração considerável das suas despesas mensais, e que, de momento, já está completamente embaciado, tal é a temperatura no interior e a falta de ar.


Apesar de cheio, o metro está imerso em silêncio. Os que estão sentados aproveitam para dormir; os que estão em pé lutam contra as pálpebras que teimam em se fechar. Fica apenas o som do contacto do veículo com os carris, constante e barulhento, apenas interrompido pela voz que anuncia as estações.


A parte mais longa da viagem é repetitiva e monótona. Troco os auscultadores de ouvido pelos headphones e fico apenas eu, a voz que me canta ao ouvido e os meus pensamentos. Normalmente, esta é a melhor maneira de passar estas viagens: esquecermo-nos que nelas estamos. A certa altura, uma senhora sai e consigo encostar-me e pousar a mochila no chão, aliviando o peso das costas. O ar continua abafado, continuo sem espaço para poder esticar um braço que seja e a paisagem continua invisível, escondida por trás da cortina de condensação que cobre as janelas.


Para lá da Senhora da Hora, a situação muda. Quando achas que já é impossível mais um corpo que seja entrar no metro, o universo dá-te uma chapada na cara e entram mais cinco. A falta de ar passa de incomodativa a angustiante. O espaço torna-se claustrofóbico, como estar preso num túnel com quilómetros de terra por cima. Tenho uma senhora do lado direito, um miúdo do lado esquerdo, um senhor de costas em frente com o casaco a milímetros da minha testa. Algures mais para a esquerda, alguém cheira tão mal que me deixa o nariz a arder. Se estas viagens de si já me deixam enjoada, assim sinto-me quase a desfalecer.


A cada paragem risco um traço mental na contagem das que ainda faltam, como um prisioneiro que conta os dias que já passaram para não perder a noção do tempo. Tento concentrar-me na música, mas há alturas em que já nem ela me salva. A sensação de sufoco está demasiado presente.


O movimento continua. Abre portas. Saem pessoas e entram pessoas ao mesmo tempo, sem respeitarem as regras do bom senso e da convivência em sociedade, empurrando-se e por vezes, até se insultando. Fecha portas. Movimento durante dois minutos. Repete o processo. Fantasio com sair da carruagem a cada paragem, ansiando por ar fresco e espaço aberto.


Percorro as situações mais caricatas que já presenciei dentro de metros para me distrair. Uma senhora idosa a rezar o terço a viagem toda. Um senhor a rezar o seu próprio terço: "onde está o cara***" do telemóvel. A frase foi repetida até à exaustão, deixando-me a pensar no que de tão mal terá corrido na vida do senhor para a sua mente ter chegado a este ponto. Um casal de velhinhos a cair como dominós; mal entraram no metro, a senhora desequilibrou-se e caiu em cima do marido, que por sua vez se desequilibrou também. Nenhum deles chegou ao chão, no entanto. As pessoas à volta conseguiram segurá-los a tempo. Num dia bastante frio vi um cãozinho que tremia tanto que até metia pena. Já vi tanto bêbedos como sem-abrigo caídos pelos bancos nas primeiras horas da manhã. Já vi pessoas a almoçar, a pintar as unhas e a arranjar as sobrancelhas com uma pinça.


Chego, por fim, à Trindade. Todos os dias, faça chuva ou faça sol, sair do metro para o ar fresco é a melhor sensação possível. Entrar no metro é o exato oposto.

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