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Samuel Úria: "Estou a viver para além dos meus sonhos"

Atualizado: 25 de nov. de 2019

O Ponto e Vírgula entrevistou Samuel Úria, no âmbito da tour "Pés de Roque Enrole". A carreira na música, a paixão pelo cinema e até a crise em Hong Kong foram alguns dos temas abordados.

Fotografia: Sofia Matos Silva

A tour "Pés de Roque Enrole" levou Samuel Úria a dar cinco concertos pelo país. O Maus Hábitos foi o palco dos dois realizados no Porto - a 9 e a 10 de outubro, respetivamente. A proposta era recordar o lado mais rock do artista português; ainda assim, os espetáculos não deixaram de trazer outros registos igualmente marcantes.


Foi, precisamente, no Maus Hábitos que Samuel Úria conversou com o Ponto e Vírgula. Descontraído, acompanhado por uma chávena de chá, o músico explicou o conceito dos novos concertos, refletiu sobre a sua carreira, deu algumas pistas quanto ao futuro e, ainda, abordou o mundo do cinema.



Estes concertos no Maus Hábitos são propostos como um regresso à base, através do que mais de rock’n’roll há na tua discografia. Porque é que decidiste fazer esse regresso ao passado?


A decisão, para ser sincero, está ligada às salas em que foram programados estes concertos. Era esse originalmente o convite no Musicbox em Lisboa, depois apareceu também a oportunidade de vir fazer isto nos Maus Hábitos. Está ligado, como são clubes… clubes no sentido de, quando as pessoas vêm ver concertos, quando vêm beber um copo, são coisas que privilegiam um lado mais selvagem ao vivo - rock, também às vezes música de dança, ligeira. Então, foi decidido fazer aquilo que muitas vezes tem sido contrabandeado nos alinhamentos normais, em teatros ou em festivais, que é: às vezes são canções desse património rock’n’roll que são metidas assim em espaços no alinhamento, aqui houve a ideia de fazer isso como o grosso do alinhamento - o alinhamento andar mesmo atrás desses momentos mais rockeiros, mais eletrificados, mais ruidosos. Portanto, fiquei feliz da vida com a oportunidade de poder voltar aos clubes e dar concertos mais ou menos da mesma fórmula com que dava há 15 anos, quando era um jovem adulto que estava a pisar pelas primeiras vezes os palcos.


Já havia uma saudade desses tempos?


Havia. Lá está, é uma saudade que vem sendo exorcizada nos ensaios. Nós não ensaiamos muito, mas quando ensaiamos, há um lado barulhento que tem sempre de entrar, mas que também vinha a ser exorcizado nos pequenos momentos, sobretudo nos concertos de verão, em festivais, quando há palcos ao ar livre, em que podemos fazer um bocadinho mais de barulho. Nós aproveitamos sempre a oportunidade para ir buscar esse espírito antigo que continua cá latente.

Fotografia: Sofia Matos Silva

Como definirias o teu estilo musical? És um pouco de tudo ao mesmo tempo.


Eu acho que só consigo defini-lo pelo ecletismo ou pela heterogeneidade, porque eu acabo por ser, de uma forma muito natural, um reflexo também daquilo que eu ouço. E a minha coleção de discos, a música que eu pesquiso, é muito diversa e muito díspar, e se eu sou um bocado uma sumula de todas essas influências, conscientes ou não, é natural que quando eu quero fazer um disco, embora haja cunhos pessoais muito fortes em alguns aspetos, nem sempre são propriamente aspetos estéticos ou aspetos primariamente musicais, também tem a ver esse lado mais estanque e que me carateriza. Depois, a roupagem musical torna-se um pouco mais diversa. Embora os discos que eu faça em nome pessoal andem sempre ali em torno de qualquer coisa rock, pop, às vezes há um bocadinho mais operático, muitas vezes um bocadinho mais blues, às vezes mais despojada e mais folk, mais tradicional. Mas, mesmo neste bocadinho em que eu tentei concentrar tudo aquilo que carateriza os meus discos, disse já um montão de géneros, e ainda há muitos outros que fazem parte e que, ou que já explorei ou que ainda gostaria de vir a explorar.


Há alguma inspiração que seja mais forte ou que te marque mais?


Acho que as minhas grandes influências musicais têm um papel mais fundamental na minha vontade de fazer canções do que propriamente na vontade de fazê-las parecidas com aquilo que acabei de escutar. Malta que eu mais ouço… eu estou sempre a citar o Bob Dylan, porque é provavelmente o meu artista preferido, ou o Cohen. Eu escuto-os e a vontade que eu tenho quando acabo de ouvir um disco, quando acabo de ouvir uma série de canções deles, não é tanto ‘quero fazer uma coisa igual a esta, quero homenageá-los, quero citá-los e quero que eles fiquem orgulhosos de mim’, o que quer que seja. É mais aquela ideia de: eu tenho a felicidade de ter esta profissão e ouço estes gajos e não posso ir para casa sentar-me e ver televisão, tenho que ir fazer canções. Porque, de facto, isto é a coisa mais maravilhosa que existe. E, quando ouço músicos que me maravilham, eu quero fazer parte dessa corrente de gente que faz música – independentemente daquilo que é o estilo, independentemente daquilo que é a influência. Eu quero ser motivado, e estou a ser motivado, por pessoas que são maiores do que a vida.


Já aconteceu ouvires um disco que tenhas apreciado bastante e teres logo vontade de escrever algo?


Quase sempre acontece. Aliás, às vezes, até tenho que fazer o exercício de contenção; acabei de lançar um disco e não posso já estar a pensar em canções novas. Porque tem de haver uma espécie de período de nojo, ou de pousio, para que as próximas coisas nasçam mais saudáveis. E, então, guardo-me para escrever em períodos específicos. Mas, quando venho de um concerto de que gostei muito, quando ouço um disco de que gostei muito, está lá sempre essa vontade, ‘fogo, é tão fixe fazer canções, estas pessoas fazem-nas tão bem, deixem-me também fazer parte desse processo coletivo’.

Ficaste com vontade de fazer mais, depois do concerto de ontem à noite?


Não, depois de ontem não. Depois do concerto de ontem à noite fiquei com vontade de uma ventoinha e de um fino geladinho.


Há algum álbum - ou canção - que consideres teu preferido?


Vou tendo. Uma semana é um, outra semana é outro. O que é uma coisa sempre muito inconclusiva e que frusta um bocado quem faz essa pergunta - e peço desculpa, porque eu percebo. Já fiz perguntas semelhantes e obtive respostas com este tipo de ambiguidade, mas é absolutamente sincero. Há alturas da vida em que estou a ouvir canções e acho ‘isto é a melhor canção alguma vez escrita’, e durante uma semana eu vou achar isso. Mas, depois, há alguma coisa que a destrona – e depois até pode recuperar o pódio. Isso acontece-me com tudo: com as canções, com os filmes, com os livros, com o que quer que seja. Há sempre uma espécie de, esta é a melhor canção de todos os tempos, durante esta semana. E vai sendo renovada. E peço desculpa por esta inconstância, mas ela é absolutamente verdadeira. Não consigo mesmo fixar a melhor coisa que alguma vez foi feita. Não consigo. Não consigo comprometer-me com isso.


Regressando um pouco ao início: como te meteste no mundo da música?


O mundo da música é que se meteu em mim. Eu acho que

tenho muito pouco mérito no meu percurso - sobretudo se falarmos num percurso profissional. Eu fazia canções de forma amadora, tive as minhas bandas de liceu. De repente, das bandas de liceu, que eram bandas barulhentas, como aquilo que eu ando a tocar agora, comecei a fazer versões um pouco mais desaceleradas, só voz e guitarra, porque comecei a ouvir os discos do Bob Dylan da fase folk. E, depois, também entraram uma data de influências de cantautores, os singer-songwriters, e eu comecei a tornar-me num. Houve malta que ouviu, quis-se juntar e quis começar a fazer coisas comigo. De repente, eu estava a fazer música em português, cantada em português, numa altura em que não havia tanta gente assim - no panorama pop rock, da música não erudita, ou do que quer que seja - a fazer músicas cantadas em português.

Isso gerou atenção; quando dei por mim, havia

expetativas criadas para um próximo disco, havia editoras a serem metidas ao barulho, havia concertos a serem marcados. Eu estava a dar aulas, deixei de ter tempo para dar aulas, tive que deixar de dar aulas. E aos 30 anos estava a fazer música de forma profissional e não sei explicar como. Estava a fazer as canções da mesma forma recreativa, da mesma forma lúdica como as fazia quando tinha 15, mas havia gente a querer trabalhar comigo, havia gente dependente de mim para as suas atividades profissionais, também. Entrei num carrossel e não consigo precisar como é que esse passo foi dado; muito provavelmente fui sendo empurrado – e ainda bem que fui. Eu fico muito contente por estar a fazer isto. Não há melhor profissão.


Como funciona o teu processo criativo? Para além da música que ouves, o que te inspira? O que te faz pegar na caneta e na guitarra?


Embora, como eu há bocado estava a dizer, o meu processo criativo seja muito semelhante àquele que era quando eu fazia canções de uma forma despreocupada na adolescência, não há grandes diferenças no desenvolvimento de uma ideia, na maneira como ela desabrocha numa canção. A grande diferença hoje em dia é que eu faço questão de me isolar e de, cada vez mais, ter períodos específicos para escrever canções. Pode ser uma ideia que está só concentrada em mim, mas tenho um bocado a noção de que se não estiver sempre a fazer canções, vai haver uma altura em que elas têm que sair, porque há um desconforto já físico das que se vieram a acumular e, então, há mesmo um período que é o abrir da torneira. Isto tem que sair, senão vai azedar cá dentro. E, antes que a coisa azede, há o período em que me isolo, fico as horas que forem precisas para escrever canções, não me levanto enquanto não houver canções feitas, enquanto não houver ideias desenvolvidas, enquanto a torrente não desaguar numa coisa na qual eu me reveja e na qual eu considere uma canção. E uma canção puxa a outra e depois, de repente, tenho um disco escrito. Em termos de método, cada vez mais começo a escrever a letra antes de escrever a música, porque há um acamar já rítmico, um acamar silábico, que vai determinar a melodia, que vai determinar aquilo que é a parte musical. Sou um bocado picuinhas em algumas questões, noutras não sou tanto, mas, lá está, são uma espécie de rituais, mas que são rituais práticos. Eu tenho bastantes rituais na escrita de canções, naquilo que precede e naquilo que faz parte do desenvolvimento. Mas, ao contrário do ritualismo quase supersticioso dos jogadores que antes de entrarem em campo beijam a toalha e benzem-se e não sei quê, os meus rituais são bastante práticos, porque eles ajudam mesmo a que a canção seja desenvolvida em determinados moldes. E, então, não me quero libertar deles. Mesmo que às vezes sejam defeituosos, como são moletas que continuam a ajudar-me a escrever canções - podem não ser as melhores, podem às vezes ser contraproducentes para quem as conhece para além de mim - não quero libertar-me desses pequenos momentos ritualísticos, de isolamento, de sentar-me de determinada maneira, de imaginar que estou num determinado sítio para ter uma espécie de largueza mental para escrever. Continuo apegado a essas coisinhas. Às vezes subjetivas, mas que objetivamente resultam.


Têm funcionado até agora.


Não me posso queixar.


Sentes dificuldade em passar para notas musicais as melodias que ouves na mente?


Não posso propriamente falar em dificuldade, porque… claro que há dificuldades, às vezes há soluções que exigem um bocadinho mais de trabalho. Mas como eu também não estou desligado, lá está, desse caráter lúdico, gosto mais de pensar… isto pode ser uma diferenciação puramente lexical, mas eu gosto mais de falar em desafios do que em dificuldades. Porque, a dificuldade, ninguém quer passar por dificuldades; desafios, as pessoas já gostam de desafios, gostam de ser desafiadas. E então, muitas vezes, a escrita de uma canção, numa determinada canção, num determinado tema, desenvolver uma determinada melodia, pensar num arranjo em específico, tanto pode ser o salto da ponte agarrado a uma corda bungee, como pode ser um sudoku extremamente difícil.

É aquela coisa que tu queres fazer porque também te estás a autodeterminar na maneira como a fazes, estás a superar-te. Então, eu não falo de dificuldades porque a falar de dificuldades poderia estar a puxar para um lado mais desagradável, e eu sou uma pessoa tão estupidamente grata por fazer o que faço, que o desagradável não entra no meu discurso. Entram os desafios, entram os momentos que são um bocadinho mais tensos e que oferecem mais concentração, oferecem mais exigência, mas tento sempre falar num tipo de léxico mais positivo. Então, gosto de puxar pelos desafios mais do que pelas dificuldades.


E em relação às letras? Sentes que consegues passar para palavras a intenção que tens, o que queres dizer, e que as pessoas efetivamente percebem a ideia?


Para mim não é tão importante que as pessoas percebam, é mais… não entendam isto como um exercício de sobranceria, porque não é, de todo, e eu já vou explicar. É mais importante que eu seja muito honesto naquilo que estou a escrever – e tenho sempre que ser honesto, é a única coisa que eu posso mesmo garantir, é a honestidade total naquilo que passo para o papel e que depois passa para as canções. Não há ali nada que seja mentira. Mesmo que às vezes sejam relatos que não são literais ou histórias que não se passaram comigo, pelo menos a intenção de escrever aquela canção e a forma como eu a desenvolvo tem que estar relacionada com uma ideia que é minha e que é sincera. Mas, por outro lado, como parto para escrever relatos pessoais, experiências, e também não quero submeter as pessoas a uma nudez explícita… eu uso o exemplo do homem que abre a gabardine e não quer estar a abrir a gabardine e estar a mostrar as partes púbicas que ninguém merece ver, que ninguém tem que suportar. Eu faço exercícios às vezes crípticos, simbólicos, puxo muito por subtextos, para que o relato, para que a experiência, não esteja demasiado centrada na literalidade da coisa que me aconteceu, na nudez da experiência. Por isso é que eu estava a dizer que não me interessa tanto que a pessoa compreenda o significado original; é para mim muito importante que a pessoa compreenda que existe um significado e que vá atrás de uma experiência que pode ser partilhada.

Quando eu escrevo uma coisa escondida e codificada, e quando ponho um biombo à frente, aquilo que era uma história da minha vida, pode, de repente, tornar-se, por intermédio dessa codificação, numa história da vida da pessoa que me está a ouvir. Poderia haver muita gente que se frustrasse com isto, mas, para mim, não há nada mais feliz do que alguém no fim de um concerto dizer-me que uma canção adequou especialmente, ou que entendeu uma canção que eu sei que é inatingível, porque está lá uma história que é intransmissível, mas que foi transmitida e a pessoa decidiu entendê-la e decidiu projetá-la nas suas próprias experiências. E já aconteceu… esta é uma história que eu gosto de contar. Um amigo meu, que também escreve canções, um dia veio ter comigo e disse ‘eu gostei dessa tua canção, eu percebi o que queres dizer, eu também já passei por isso, o meu casamento não está grande coisa’. E a minha canção não tem nada a ver com relações amorosas, muito menos com o compromisso de um casamento. Mas, para mim, foi bonito perceber que na confusão das minhas palavras houve um entendimento da sinceridade delas, então houve também uma necessidade de entender aquilo que lá estava descrito. Mesmo que não fosse o sentido original; houve uma apreensão que não é a original, mas que faz parte. E eu fico muito contente quando a coisa é transmitida, mesmo que não seja transmitida com a originalidade ou com a narrativa inicial.


És um fã assumido de cinema.


Sim, gosto muito de Cinema.


O cinema influencia a tua forma de criar música?

Completamente. Aliás, acho que consigo dar exemplos mais específicos e técnicos da maneira como o cinema influencia a minha música, do que da maneira como a música influencia a minha música. Isto é mesmo verdade. Ainda no outro dia em dois eventos, eu fui convidado para falar sobre a escrita de canções, e uma das máximas das quais eu falava é que a arte inspira arte. Quando estamos ligados a artes, seja a pintura, seja o teatro, seja a escultura, seja a própria música, quando estamos a ser alimentados pelas expressões particulares, as opções que determinados artistas escolheram para as suas formas de arte - sejam elas mais plásticas, sejam elas mais abstratas -, a verdade é que isso liga-nos a essas expressões e vai ajudar-nos a desenvolver as nossas formas de arte. Nessa altura lembrei-me

repentinamente do um exemplo de um filme que eu vejo com muita regularidade, que é do John Ford, chamado a Grande Esperança. É um filme que conta de uma forma romanceada parte da vida do Abraham Lincoln. E é engraçado porque à terceira ou quarta vez que estava a ver o filme – eu era um miúdo - percebi que a personagem do Abraham Lincoln, interpretada pelo Henry Fonda, está sempre a ser filmada em contrapicado, de baixo para cima, para que aquele ator, que já era alto, pareça gigantesco. A audiência está sempre a olhar para cima para ver a cara dele. Está perante um titã, está perante um gigante. E, caramba, eu quis fazer uma canção que também fosse feita dessa maneira. Foi uma canção que fiz há uns anos, dedicada ao meu avô. O meu avô era sapateiro, passou a vida ao nível dos pés das pessoas e, então, tentei que a minha canção fosse construída ao nível dos pés, mas sempre a olhar para cima, para uma figura que era, pelo menos para mim, maior do que eu. Então, é uma canção muito rasteira, fala muito do chão, eu estava a escrever deitado no chão, com referências a pés, mas sempre a olhar para uma pessoa que, estando ligada ao chão, para mim estava num patamar superior. E foi o cinema que me puxou para escrever dessa maneira; um exercício de estilo do John Ford influenciou-me a escrever uma canção de uma determinada maneira. Nem sempre consigo precisar influências musicais para o mesmo caráter espiritual, que parte da técnica, mas que a transcende.


As referências cinematográficas das tuas músicas surgem-te naturalmente?


Neste caso, foi pensado. Mas sim. Há bocado disse que fazia música sem saber como vim cá parar porque quase toda a minha infância e adolescência quis que a minha atividade profissional tivesse a ver com as artes gráficas – com a ilustração, por exemplo. Estava muito mais ligado profissionalmente e a projetar-me para exercer esse tipo de profissão do que a música. E, embora hoje eu tenha perdido completamente o comboio das artes gráficas e da ilustração, continuo muito apegado a fórmulas visuais. É engraçado como muito da minha música - não tanto a letra, mas a parte melódica - é escrita, relacionada e transmitida (até para os meus músicos) de uma forma visual. Então, esse lado quase sinestésico de uma sensação estar a causar outra que não é do mesmo domínio está muito presente na forma como gosto de escrever e como gosto de pensar música.


Tens uma atenção especial pelo processo dos teus videoclips?


Por acaso, até sou um bocado desligado dos videoclips. Às vezes, pelo excesso de rapidez com que têm de ser feitos, eu delego muito esse trabalho. É verdade, têm sempre o meu parecer e dou o meu input na edição. Curiosamente, se calhar, até por uma espécie de auto preservação… não sou aquela pessoa que quando aparece na televisão muda de canal, mas também não tenho nenhum prazer e não o procuro. Se calhar, por ser um bocado desligado da imagem própria, sou desligado também do processo dos videoclips. Levantaste isso e eu já tinha pensado nisso e até acho estranho; sendo eu tão afeto ao cinema e às coisas visuais, quando chega a altura dos meus videoclips, sou mesmo uma pessoa um bocado desligada, é verdade. Felizmente, tenho trabalhado com gente muito boa.

Já que a componente visual te influencia tanto, gostavas de fazer uma banda sonora para um filme?


Gostava muito. Embora, enquanto espetador, esteja mais ligado à imagem do que propriamente ao som, há filmes em que a música é tão extraordinária e casa tão bem que a imagem que é impossível de ignorar. A música está lá, às vezes, para ser ignorada, mas, quando ´tão complementar e quando está tão humildemente construída para servir a imagem, torna-se gritante e difícil de ignorar. Por outro lado, sendo eu um admirador tão grande desses momentos, sinto-me incapaz de os reproduzir e fazer da mesma forma - e até deveria ter algum pudor em dizer que gostava de fazer. Mas gostava mesmo, lá está, é daqueles desafios que gostava de aceitar.


Para terminar a parte de cinema, tens algum realizador favorito?


Também acontece de ir mudando. Há bocado falei do John Ford e, naquela roleta de filmes que vão sendo sucessivamente os meus favoritos, acho que ele vai sendo o mais constante. Às vezes vacilo e quase digo o Yasujiro Ozu, mas acho que o Ford é o mais constante.


Ao longo dos anos tens trabalhado com vários músicos. Qual é o teu critério na escolha de com quem vais trabalhar?


O critério é perfeitamente casual. Ou seja: acontece por uma questão de naturalidade da profissão, de cruzar-me com pessoas na estrada. Existe assim uma empatia natural com as pessoas com as quais eu me cruzo; não é mérito meu, é mérito delas. A empatia é muito fácil de acontecer. Como provenho de um meio musical, da malta da FlorCaveira, em que toda a gente tocava nos projetos uns dos outros, existe alguma naturalidade para quando conheço alguém dizer ‘quando é que fazemos qualquer coisa juntos?’. Pessoas que podem ser do espectro mais distante daquele que é o meu. Faço sempre essa proposta, é uma proposta que é a valer. E depois é engraçado quando as pessoas, passado uns tempos, cobram a proposta que lhes foi feita e dizem ‘então, quando é que fazemos?’. Tem de acontecer - e acontece, felizmente.


Com quem ainda gostarias de partilhar palco ou estúdio?


Eu sou tão afortunado que acho que, em Portugal, já partilhei palco, estúdio, carro, backstage, com as minhas grandes referências, as pessoas que eu cresci a ouvir, ou os pares com quem eu tenho muito prazer de fazer parte de uma geração. É muito difícil pensar em gente com a qual eu ainda não me cruzei. Deixa ver se eu me lembro... ainda não fiz nada, por exemplo, com os Glockenwise. Eles são colegas de editora e, no outro dia, cruzei-me na casa de banho com um deles e lancei esse repto. Eu gosto muito do último disco deles. Eles são mais novos, não vou dizer que há anos que os adoro ou assim, mas são miúdos cheios de talento e acho que quero fazer qualquer coisa com eles. Está na calha, vou dizer e vai acontecer, vai ter de acontecer.


Porquê aquela capa do Marcha Atroz?

Normalmente, as capas dos meus últimos discos - não sei se isso agora vai acabar ou não - são autorretratos. Na Marcha Atroz, como há um tema subjacente e transversal às canções, o regresso ao passado enferrujado, decidi fazer um autorretrato enferrujado. Então, pensei num robô inspirado, lá está, por alguns do cinema, mas que está assente nas proporções da minha cara. Decidi fazer um robô com um ocre ferrugento, no meio de um ferro velho. Mantém a ideia personalizada dos autorretratos, mas um autorretrato enferrujado, no meio de um monte de peças que já não têm utilidade.


Gostas de desenhar no teu tempo livre?


Gosto muito de desenhar, mas não o faço no tempo livre. Ao contrário da música, como estudei durante algum tempo desenho, sou mais criterioso e mais descontente. Acho que a música se tornou uma forma de arte mais popular, mais aberta a que as pessoas pintem fora do risco. A minha relação com o desenho e com a ilustração, até por ser uma coisa mais gráfica, contém um carácter mais específico, mais técnico. Sou mais intransigente naquilo que faço. E, como deixei de desenhar há 20 anos, de uma forma regular, sinto mesmo que perdi o comboio. E, então, deixou de fazer parte dos meus hobbies, porque fico muito descontente. Uma vez que deixei de treinar diariamente, acho que já não mereço continuar a exercer essa atividade e sou um eterno descontente e frustrado com o desenho. Com o desenho posso falar em dificuldades em vez de desafios.


Qual foi o concerto que mais te marcou?


Há assim uns quantos que me encheram as medidas. Há uns anos era mais fácil de pensar no ‘top 10’, até tínhamos essa conversa com a banda. Entretanto, tocamos tanto que a coisa se tornou mais diluída. Normalmente, os concertos que nós damos não têm tanto a ver com as coisas correrem bem em palco. Curiosamente, alguns dos concertos que estão no nosso top foram muito caóticos, e que em palco não correram da melhor maneira. Houve muitos enganos e coisas a falhar, mas apanhamos um público tão extraordinário que a coisa entrou mesmo para os meus concertos. Lembro-me de um Super Bock Super Rock, no Meco ainda. Bons Sons, cada vez que vou tocar lá... tornou-se um festival no topo das minhas preferências. Tem a ver com o sítio e com o público; as pessoas estão lá para ver concertos e estão lá para acarinhar, e a coisa torna-se extraordinária. O último concerto que dei nos Bons Sons foi mesmo uma marca. A malta da banda ficou-me eternamente agradecida por os levar lá. Mas, há mais, há assim uns concertos em salas emblemáticas de Lisboa. Nós tocamos o ano passado no Coliseu e foi engraçado, no Tivoli e no São Luís demos concertos de que gostamos muito. Nas vezes que tocamos na Casa da Música também houve um ou outro que foram especiais. Se calhar, diria, no seu conjunto, os concertos que dei nos Bons Sons foram concertos que ficaram no coração. E tem sobretudo a ver com o público.


O público torna as coisas mais fáceis.


É verdade, é verdade. Nós, em Portugal, temos um público que é muito educado. Educado no melhor sentido. São educados, às vezes, na falta de educação que têm em fazer banzé e em andar na confusão. Tem a ver com gostar de agradar a quem está em palco, quando percebem que as coisas estão a correr bem e quando gostam do artista, querem também agradar-lhe. Isto não é subserviência, isto é uma educação do público português que acho muito bonita. Hoje em dia, já começo a perceber que as gerações mais novas gostam de ir aos festivais pelos eventos ou pelo campismo. Não tenho nada contra isso. Mas continua a haver uma espécie de resistência - e não é assim tão pequena; existe uma fação do público português que quer ir a concertos para passar um bom momento. Percebem que o bom momento também passa por se entregarem a quem está em palco. Acho isso muito bonito e ainda hoje se sente.


Há alguma canção do teu reportório que tenha um significado especial?


Não tenho mesmo. Há canções que faço por tocar por perceber que ganharam um carinho especial no público. Mesmo nestes concertos mais barulhentos que ando a tocar... É verdade que também aconteceu para eu poder descansar dos momentos mais rock’n'roll, mas há canções como o ‘Lenço Enxuto’, que é super palavrosa, e ainda assim percebo que as pessoas estão a cantar. Muita gente consegue acompanhar a letra. E depois ainda há outra canção que é mais especial, porque não está em nenhum disco fácil de encontrar, que é a ‘Barbarella e Barba Rala’. Desde o início se tornou um momento especial nos concertos. Hoje em dia, ando com um técnico de luz e não vejo muito o que se passa no público, por estar a ser bem iluminado, mas logo o início, quando tocava em salas mal iluminadas e conseguia ver as pessoas à minha frente, eu percebia que a ‘Barbarella’ era uma canção que as pessoas escutavam de olhos fechados e a cantar. Isso é comovedor para quem está a entregar palavras e relatos da sua vida. Estar a haver essa partilha emocional é fixe.

No concerto de ontem voltou a acontecer.


Voltou a acontecer.


Para quando trabalhos novos? Novo álbum, novo single.


Novo single muito em breve - mas mesmo muito em breve. Já está gravado, está a ser misturado. Novo álbum, diria no primeiro trimestre do próximo ano. O facto de o estar a dizer também me pressiona para que aconteça.


O que ainda ambicionas?


Aí é que está. Às vezes, o meu manager lembra-se da primeira conversa que tivemos quando começamos a trabalhar, em que eu lhe disse - de uma forma que pode ser desmotivadora para um manager - que eu não era muito ambicioso. Eu não estou a viver o meu sonho, porque nunca sonhei com isto. Não ambicionava isto, porque achava que não era possível. Esta felicidade de poder viver de uma coisa que é uma das que me deixa mais feliz, não fazia parte dos meus sonhos. Caramba, eu tinha ideia de que o trabalho, a profissão, tinha que ser uma coisa e, que nós pudéssemos ser realizados, mas não podia ser uma fonte de felicidade, uma fonte de amizade, de poder estar com os meus amigos, de poder fazer amidos, de poder estar a expressar-me. Caramba, quem é que sonha com isto? Só se for um lunático. Eu não era lunático, eu não sonhava com isto. Estou a viver para além dos meus sonhos e, por isso, não posso falar em ambição. Se isto acabasse agora, já tinha sido muito bom. Já tinha sido bom para além daquilo que eu imaginava.

Porquê a ‘Algo’? Porquê pegar na ‘Something’ dos Beatles e traduzi-la?


Deixa-me lembrar como é que isso aconteceu... Isto pode parecer ridículo; aconteceu, para já, por achar que é uma canção a roçar a perfeição – e que nem é do melhor escritor dos Beatles, é do George Harrison. Na altura, lembro-me que fiz essa versão porque havia um lado muito Marco Paulo - isto é verdade, mas pode parecer ridículo. O Marco Paulo passou a vida a cantar covers estrangeiras em versões em português. Eu quis fazer essa cena à Marco Paulo, mas fazer com uma tradução literal - tão literal que até tem rimas que eu era incapaz de usar nas minhas próprias canções. A ‘Something’ tornou-se a canção que eu repeti mais vezes, mas lembro-me que na altura fiz mais versões. Fiz uma versão do ‘Kids in America’, que era ‘Os Putos na América’. Mais recentemente, fiz uma da ‘Lately’, do Stevie Wonder, que nunca mais voltei a tocar, apesar de achar que é uma canção genial. Depois, também há em relação à ‘Something’ um enredo que eu podia dizer nos concertos. A ‘Something’, sendo do George Harrison, o Frank Sinatra dizia que era a composição preferida dele do Lennon e do McCartney. E, já que o crédito da canção era erradamente atribuído ao Lennon e ao McCartney, eu lancei-me à sorte e qualquer dia alguém podia ouvir a canção e pensar que era minha. Então, poder receber os créditos de uma canção que é perfeita não é mau; fiz a versão em português, para poder roubar os créditos.


Tens tocado?


A ‘Something’ já não toco há mais de um ano. Muitas vezes, toco-a no ensaio de som por ser, em termos de intensidade vocal, uma canção que vai a vários sítios e é fixe para testar os microfones. Em concertos, acho que já não a toco há mais de um ano. Mas n ão está excluída, vai aparecendo. Não é daquelas que estão engavetadas.


O Adriano Malheiro já te deu os 200 euros?


O Adriano Malheiro! (risos) O Caloteiro! (risos) Não, ainda não deu o dinheiro que me ficou a dever em Vila Moura. Por acaso, o dB [David Bruno] vai atuar e eu queria ver este disco ao vivo e não posso, por estar em concertos.

Como reagiste a uma proposta, fazeres uma fala dessas para uma música?


Reagi bem, porque a minha relação com o David é muito engraçada. O meu primeiro contacto com o David foi uma página que ele criou no Facebook. Nem sei se devia estar a contar isto.


A das entradas.


Sim, a das entradas. Eu achei um piadão àquilo. O gajo quando percebeu que, em vez de ter ficado ofendido com a brincadeira, eu tinha gostado, ficamos amigos. Os Corona fazem uma referência à ‘Carga de Ombro’ no último disco. Agora vou ter que cravá-lo para fazer alguma coisa. É assim que funciona, era aquela coisa que estava a falar. Ocasionalmente, as pessoas conhecem-se e depois é ‘então, quando participas no meu disco?’. Com o dB terá de acontecer.


O ‘Teremos sempre Paris’ da Barbarella é uma referência ao Casablanca?


É uma referência ao Casablanca, sim. Aliás, existe outra referência na Barbarella. Curiosamente, por ser uma palavra estranha, a Barbarella passava em algumas rádios de Lisboa e havia gente na Internet a tentar arriscar – sem base nenhuma - escrever a letra da canção. Eu falo lá de uma coisa que é o ‘Outono de Cheyenne’ – é uma referência ao ‘Cheyenne Autumn’, também do John Ford - e não imaginam as atrocidades que apareciam escritas pelas pessoas que não percebiam a palavra. É uma canção que fala de amizade e é uma frase sobre uma espécie de amor que, embora esteja condenado ao seu fim, terá sempre uma memória que é tão forte que é mais forte que o próprio futuro. Aquilo que já aconteceu é mais forte que a inexistência no futuro. E eu achei que isso era muito bonito e que concentra um monte de referências ao amor e ao passado.

Fotografia: Sofia Matos Silva

No concerto falaste da parte de Tiananmen e de Hong Kong. Sentes a necessidade de falar de questões sociais?


Vou ser sincero: eu não sinto obrigação moral, porque também quem é que eu sou para estar a dar lições de moral às pessoas? Só que, lá está, a boca fala aquilo de que o coração está cheio, e as canções também funcionam assim. Há imagens que são tão marcantes e assuntos que são tão prementes e causas que são tão impossíveis de ignorar, que eu também não as consigo ignorar a minha música. Não sou um ativista no sentido de ter de andar sempre à coca de causas sociais para poder falar delas. Mas, também, não sou um distraído; não tenho um coração de pedra e não ignoro o que se está a passar. Às vezes, são coisas tão lamentáveis, são tão fortes, são tão humilhantes, até, que tenho de as escrever em canção. Lá está, aquele período em que as coisas têm de sair senão rebentam cá dentro. Tiananmen é uma referência que me marca desde miúdo por ser uma das coisas mais brutais que vi a acontecer durante o meu tempo de vida. E que, ainda assim, no sítio em que aconteceu, há pessoas que dizem que aquilo nunca existiu. É terrível. Este ano fez 25 anos e voltou a falar-se no assunto. Eu tinha 6 anos quando aconteceu e aquilo marcou-me para toda a vida. A imagem da pessoa a pôr-se à frente dos tanques era tão forte que, quando comecei a escrever canções, foi uma das primeiras flashadas que me deu. As queixas que nós dizemos – ‘isto é tão difícil, aquele professor, o trabalho...’. E eu penso: estudantes a sério foram aqueles que se manifestaram daquela maneira, deram a vida por um ideal, para serem completamente ignorados. Para muitas pessoas eles são mártires, mas são mártires que foram eliminados. Nem sequer têm nomes porque nem sequer é reconhecida a morte deles. É fortíssimo.



Esta entrevista foi um trabalho conjunto dos redatores João Malheiro e Sofia Matos Silva, com fotografia de Sofia Matos Silva e vídeo da estagiária Francisca Gomes.

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