"Sharp Objects". Uma reviravolta em três palavras
- Tiago Serra Cunha
- 19 de dez. de 2019
- 6 min de leitura
Quando tudo parecia resolvido, os momentos finais do último episódio de Sharp Objects, a série ignorada nos Emmy, provam que, afinal, os espectadores estavam errados — pelo menos em parte.

Quando tudo parecia resolvido, os momentos finais do último episódio de Sharp Objects provam que, afinal, os espectadores estavam errados — pelo menos em parte.
Inteligente, esta é a conclusão que todos queriam, mesmo que não o soubessem. O final de uma das mais comentadas produções do momento prova que a minissérie da HBO é muito mais que um thriller sobre raparigas mortas e o mistério que as envolve. É uma entrada intensa num mundo que parece tão real, e que na verdade poderia mesmo ser.
Lentamente, percebe-se que o verdadeiro mistério está nos pormenores que vão para além da trama que serve de pretexto para o enredo se desenvolver. Vai além de uma história de tons assustadores para ser, também, um melodrama que explora relações interpessoais e familiares e o impacto que o mundo que nos rodeia, quer queiramos quer não, pode ter na personalidade e vontades de cada um.
Um drama quase sufocante
Sharp Objects é apresentada através dos olhos de Camille Preaker, com Amy Adams numa interpretação profunda de uma personagem marcada. Repórter em St. Louis, regressa à cidade natal de Wind Gap, no Missouri, para escrever sobre uma série de desaparecimentos de jovens raparigas.
A história não é fácil de escrever. Não só pelo peso que já acarreta, mas pela forma como se sente naquele meio, que faz tudo menos ajudar o seu trabalho. O facto de regressar às suas origens despoleta em Camille sentimentos que tenta, constantemente, empurrar para o fundo da sua mente, mas que não consegue ignorar.
Uma das principais causas é Adora (Patricia Clarkson), a sua mãe. Considerada uma das figuras imponentes da pequena cidade é, ao mesmo tempo, um dos maiores alvos dos comentários constantes e típicos dos que habitam num meio como Wind Gap. Coloquem-na numa mansão com uma atmosfera que adivinha tragédia e o pacote está completo. Dentro daquelas paredes, esforça-se por ter um papel relevante para a sua filha mais nova, Amma (Eliza Scanlen).
Só que Amma, por trás da sua faceta de menina bonita que cuida da sua casa de bonecas de uma forma que consegue ser perturbadora, revela-se mais semelhante a Camille do que aparenta inicialmente. Ambas nasceram para ser rebeldes, embora em moldes diferentes. Talvez a única forma de se salvarem do ambiente tóxico que as rodeia e corrói lentamente.

Quase imediatamente, Camille é arrastada para um drama familiar interminável, que Adora faz questão em manter de pé. Só que, dentro da sua roupa escura e que cobre todo o corpo, nem faz questão de fingir que está integrada naquele meio, que tanto a marcou — literalmente.
Camille carrega consigo uma cruel coleção de palavras, cravadas na sua própria pele em momentos de descontrolo. Bebe constantemente, na maior parte das vezes sozinha, numa tentativa vã de ultrapassar o estado de paranóia em que se encontra constantemente.
Tudo se liga no final
O mistério principal que guia Sharp Objects acaba por explodir em vários outros pedaços, construídos e ligados de forma requintada. Apresenta-nos uma visão do mundo que dá a sensação de ser assustadoramente real, uma vez que lida com dilemas que não se prendem apenas com duas mortes e a investigação de Camille para a sua reportagem.
Aqui, não há elementos que estejam a mais ou que sirvam apenas para preencher a narrativa. Além do mistério principal, existem outros elementos que, acabando por estarem de certa forma conectados, completam o enredo: os traumas do passado, problemas com bebida, os cortes e alguma misoginia intrínseca.
É, também, uma exploração da vida numa pequena cidade americana, ao mesmo tempo que entra em detalhe ao nível psicológico daqueles que a integram. Faz um comentário incisivo na dificuldade que os que habitam estas comunidades têm em escapar do passado tóxico que assombra estas zonas rurais — algo que se reflete nos personagens e nos seus próprios dilemas pessoais.
A forma como os vários pretextos da série se manifestam no seu desfecho mostra que esses mesmos elementos não estavam ali apenas para figurar ou dar algum tipo de falsa sensação de profundidade à trama. Tudo acaba por ser relevante para a conclusão das várias linhas narrativas que, se já estavam relacionadas, estreitam a sua ligação com as revelações finais.
O final (in)esperado
Havia algo de errado com Amma desde o início — o tom de voz provocador, o olhar vazio por trás da aparente confiança rebelde. Só que, antes dos momentos finais, tem-se a sensação de que tudo não passava de uma máscara para se proteger da personalidade tóxica e abusiva da sua mãe que, no fundo, foi uma das causas da sua destruição.
Pouco antes do grande final, parecia que todas as questões tinham sido respondidas. Adora é acusada de matar a sua filha mais nova há anos atrás, Marian, e, graças à sua condição (síndrome de Münchhausen por procuração), pensa-se que também terá sido a responsável pela morte recente de Ann e Natalie. Tudo fica aparentemente bem, com Camille e Amma a libertarem-se finalmente do ambiente de mágoa causado pela sua mãe numa nova vida em St. Louis.

Só que sendo Sharp Objects a série que nos ensinou ser até àquele momento, nem tudo parecia certo; e na verdade não estava. Os momentos finais do último episódio desenvolvem-se, tal como a série como um todo, de forma lenta até explodir num momento de suspiro coletivo.
Num jantar em casa do editor de Camille, Mae, a nova amiga de Amma, revela que quer ser jornalista; a meia-irmã da protagonista rapidamente diz que se quer tornar numa on-camera personality, de forma a garantir a proximidade de Camille. No dia seguinte, a mãe de Mae questiona Camille sobre o paradeiro das raparigas, uma vez que tinha assistido à primeira discussão entre ambas.
Momentos depois, as atenções voltam-se de novo para a casa de bonecas de Amma. Depois de encontrar a réplica da cama que Mae tinha feito no lixo, Camille observa de perto a casa e descobre não só um dente no seu interior, mas uma imitação do chão de marfim do quarto de Adora com dentes humanos.
Agora, tudo faz sentido. Amma entra rapidamente em casa e, ao ver a irmã com o dente na mão, responde à sua expressão de horror com três sonantes palavras que dão à história a reviravolta que se cozinhava sozinha nos últimos minutos: “Don’t tell mama“.
Uma forma de escape
Os créditos iniciam-se imediatamente após as palavras de Amma, mas ainda não é hora de desviar os olhos do ecrã. A música de Led Zeppelin incita a continuar a olhar para, momentos depois, duas cenas a meio e no final dos créditos revelarem finalmente o que já se tinha percebido: foi Amma que matou as duas raparigas de Wind Gap, juntamente com as suas amigas; era ela a famosa “mulher de branco“.
Ou seja, este final mostra que os espectadores estavam errados — mas só em parte. Adora matou, de facto, a sua filha mais nova há anos atrás, mas as novas mortes foram obra da aparentemente inocente Amma. Só que, como seria de esperar, a culpa vai ter novamente com a matriarca.
Enquanto Camille usava os cortes na pele como forma de escapar aos traumas que ganhou durante a sua infância nas mãos da tóxica Adora, a dor deveria ser igual para Amma, que foi igualmente destruída. Se Amma não se cortava, qual seria o seu escape? A resposta é dada nas cenas finais.
Este é o tipo de final que se deveria esperar de uma série que nos habituou, desde o início, ao seu tom. A revelação final surge, assim, no seguimento do enredo — o anúncio não é feito explicitamente até aos créditos, uma vez que, nesse momento, já saímos do ponto de vista de Camille, que guia toda a trama; assim, permite-nos finalmente ver alguns momentos de fora e só assim é possível ter uma nuance dos atos de Amma.
Só aí percebemos que as pistas estiveram sempre lá. A atitude de Amma, os comentários, a forma como escapava de casa. Além disso, vários planos ao longo dos episódios revelaram brevemente o pormenor — por exemplo, quando por vezes se discutia quem era o assassino e a seguir a cena mudava para Amma a brincar na sua casa de bonecas. Até a música usada nos vários episódios continha pistas sobre as revelações finais. Apenas exemplos da maestria de Sharp Objects, que vai para além de um guião de qualidade.
A maternidade tóxica
Depois das revelações e de se perceber que aquele foi um escape de Amma, é fácil de entender que Adora destruiu as suas filhas, cada uma à sua maneira.
No sétimo e penúltimo episódio, fica claro que a matriarca desenvolveu síndrome de Münchhausen por procuração, uma condição que acaba por ser uma forma de abuso infantil, em que os progenitores provocam algum tipo de doença nos seus filhos de forma a chamar atenção para si próprios.
Aqui, Adora, com o pretexto de estar a curar alguma doença, está na verdade a causá-la, dando às suas filhas remédios que não passam de uma mistura de químicos e venenos. Assim, pretende sentir-se útil, sentir que as suas filhas precisam de si e, só assim, se sente realizada. Foi esta a razão da morte da sua filha mais nova, há anos atrás, causas essas que tentou encobrir.
É também a razão do ambiente tóxico que preenche cada canto da mansão vitoriana, com a presença sufocante da mãe a denegrir as filhas pouco a pouco, sendo Camille o principal exemplo.
Sharp Objects é um festival para os sentidos daqueles que gostam de boa televisão. Uma história inteligente, trazida à vida por um elenco competente e uma produção de topo.
Uma série para degustar ao ritmo a que nos propõe desde o início e que faz perceber que, por vezes, o mistério está nos pormenores que nem sempre se vêem, escondido no interior magoado de cada um.

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