Slow J, “a cria que ia libertar o mundo”
- Sofia Matos Silva
- 4 de jan. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 13 de jan. de 2020
O terceiro trabalho de Slow J, You Are Forgiven, foi lançado a 21 de setembro. Mesmo com apenas 29 minutos de duração, marca uma autêntica jornada interior em busca do silêncio.

O puto lento foi subindo devagarinho e devagarinho chegou ao topo. You Are Forgiven caiu do nada e do nada se tornou tudo – ou, pelo menos, tudo o que queremos ouvir. O Slow nunca teve papas na língua nem receio de incomodar ou afetar, mas, neste disco, perdeu todos os filtros. Derrubou os muros que ainda erguia, abriu a porta e disse-nos “entra”. Deu-nos a chave para a sua alma e o código para a sua mente.
Uma tendência que se verificou em 2019 foi a quantidade de músicos que parecem ter decidido deixar-se de tretas e apresentar-se ao mundo pelo que são, sem maquilhagem ou romantismos. A vida é o que é, somos todos humanos e trazemos connosco a bagagem que isso implica. O Johnny boy foi dos últimos a entrar nessa corrida – o disco saiu em setembro -mas fê-lo como ninguém. Pegou no que de melhor e pior a vida lhe tem dado e transformou-o em algo muito maior do que todos nós.
A jornada começa com “Também Sonhar”. A voz de Sara Tavares junta-se à de João Batista Coelho - nome de nascimento de Slow J - para o ajudar a contar a sua história. Agora é pai de família e alcançou a fama, mas não sabe se é bem isso que quer, nem se as subidas justificam as descidas nesta montanha-russa que é a vida. Este é, definitivamente, um disco de partilha. A segunda canção também conta com uma colaboração; Papillon, o parceiro do projeto Sente Isto, é a outra metade de “FAM”. Do calor da família passa-se para o frio da solidão. Em “Onde é que estás?”, sentimos a dor que sente com se fosse nossa. O mesmo se passa em “Lágrimas”, em que cada nota representa cada um dos degraus em que Slow bateu ao cair até ao fundo do poço. Nesta música, o João fala do aborto espontâneo que a namorada sofreu e da dor que desejava poder carregar sozinho.
“Teu Eternamente” é o único single do disco, lançado com um ano de antecedência. Nesta faixa é cantada uma narrativa paradoxal, na qual Slow se entrega completamente a alguém, mas, ao mesmo tempo, apenas quer estar sozinho. Qualquer pessoa consegue reconhecer um poeta nesta construção, tal é a mestria com que Slow brinca com as palavras, a facilidade com que as dobra e desdobra como se de plasticina se tratassem.
Já “Só Queria Sorrir” é o último bater no fundo, o último murro no estômago – e, talvez, o segmento de You Are Forgiven com que mais simpatizamos. Já toda a gente sentiu cada uma das palavras que Slow desabafa. Independentemente das dificuldades na vida de cada um, das razões que levaram Slow a sentir-se assim e a escrever estas palavras, e das razões que nos levam a identificarmos-nos com elas, a verdade é que é um sentimento universal. Todos queremos mudar o mundo, deixar algo para trás, mas há dias em que não temos forças para nada. Há dias em que só queremos ser capazes de sorrir.
A aceitação começa em “Mea Culpa”, fase que se estende para “Muros” – constituída unicamente por uma estrofe contínua. Slow aceita a vida que tem, aceita que não pode mudar o passado, mas que pode e deve moldar o futuro. Aceita quem é e inicia o processo de se perdoar por tudo o que considera ter feito errado. Até chegar o “Silêncio”. Não é uma canção propriamente feliz; numa fusão entre paz e inquietação, vemos o mundo pelo que é, a plenitude da sua beleza e todos os seus defeitos – e ficamos em paz com o que vemos. “Silêncio” é a verdadeira obra-prima do disco. É uma canção pura, autêntica, calma e honesta.
Slow arrancou a pele, os músculos, os ossos, as entranhas, até se tornar apenas na substância de que este disco é feito. A matéria incorpórea de que os sonhos são feitos, mas também os pesadelos, e tudo o que está entre uns e outros. E deu-nos tudo isto, sem nunca pedir nada em troca. You Are Forgiven é tanto dele como nosso; dele porque o criou, nosso porque o recriamos todos os dias, de cada vez que o ouvimos e de cada vez que dele retiramos algo mais.
Depois de The Free Food Tape e The Art of Slowing Down, Slow J marca de vez a sua posição como um dos artistas mais importantes do momento. Por entre culpa e gratidão, dor e felicidade, raiva e paz, promete que o puto lento agora não abranda. Um futuro brilhante parece estender-se à frente de Slow J. Mas, mesmo que não seja assim, já é nosso eternamente.


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