As histórias que os olhos sabem sem saber
- Sofia Matos Silva
- 22 de out. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 13 de jan. de 2020
Matthieu Paley é fotógrafo da National Geographic e reconhecido a nível mundial. A exibição “Um Século e Tanto” tornou possível a conversa com o francês.

A National Geographic inaugurou no Porto a exposição “Um Século e Tanto”, no âmbito da celebração dos 130 anos da revista. O Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto foi o local escolhido para albergar a exibição até julho de 2020. Por entre as mais célebres capas dos números da revista e objetos que marcaram a sua história ao longo das décadas, pode-se encontrar um corredor dedicado à fotografia.
A fotografia assume um papel central na National Geographic Magazine. No entanto, a revista é muito mais “para além de ser apenas um meio de publicação de boas fotografias”. As palavras são de Matthieu Paley, fotógrafo da NatGeo e membro do The Photo Society. Para o francês, a fotografia é a sua vida e, até, o seu dever. O interesse profundo pela natureza humana leva-o aos locais mais recônditos do planeta; a paixão por zonas pouco compreendidas pela sociedade ocidental transforma os seus trabalhos numa mistura de ativismo e registo sociocultural.
Esta motivação para dar voz aos que não a têm e para mostrar ao mundo que “somos todos iguais” conduziram-no ao Paquistão em 2014. A fotografia foi tirada para um trabalho da National Geographic, uma história complexa sobre a evolução da alimentação. “Pediram-me para percorrer o mundo – procurando sempre ambientes muito diferentes – em busca de pessoas que se alimentavam sem usar comida de mercado, ou seja, que tinham uma dieta tradicional que não dependia de comida de mercado. Hoje em dia, é muito difícil encontrar lugares suficientemente remotos para as pessoas não comprarem nada. Andei por sete ambientes e reparei como a busca por comida afeta a vida das pessoas, porque, quando não compras comida na loja da esquina ou no supermercado, a tua principal preocupação todos os dias gira à volta da comida”.
As histórias por trás da fotografia

“Esta fotografia foi tirada nas Montanhas de Karakoram, a zona mais oeste da região dos Himalaias, no Paquistão. Eu estava a acompanhar este grupo de mulheres – no inverno, porque no verão não se pode atravessar o rio aqui -, que estavam a caminhar desde a aldeia até cerca de uma hora e meia do outro lado do rio (o Rio Hunza) onde existe um pasto alto onde elas recolhem madeira. E estas mulheres estavam a fazer tudo isto apenas para poderem cozinhar. Foi a minha busca por comida que me levou a passar o dia inteiro a caminhar com estas mulheres.” Assim, o que começou por ser um artigo centrado em comida evoluiu para uma narrativa sobre estilos de vida – e como a procura por comida os influencia.
Uma fotografia compreende em si várias histórias. Conta a história dos representados - os para sempre imortalizados num formato de 4:3. Uma fração de segundo é suficiente para retratar uma história – mesmo que a história seja desconhecida ou que os olhos saibam a sua existência, mas não o seu conteúdo. Mas uma fotografia conta também uma história invisível: a história de quem a registou. Com um World Press Award e um Photographer of the Year International Award no bolso, assim como vários outros prémios, o fotógrafo que também escreve as histórias dos que encontra tem, igualmente, uma história interessante para contar.
Como conseguiu Matthieu Paley esta fotografia? “No meu caso, a maior parte do meu trabalho fotográfico está em lidar com pessoas - não faço animais selvagens, não faço paisagem. Todas as minhas histórias são sociais; é muito sobre psicologia, é muito sobre antecipação, é muito sobre desaparecer no segundo plano e, para isso, são anos de experiência. Nesse caso em específico, eu falo a língua, estou muito familiarizado com como me comportar, o que fazer, o que vestir”. Antes de disparar o obturador, Paley teve que atravessar o rio, observar o local, avaliar possíveis enquadramentos e composições, "tirar notas mentais".
“É tudo antecipação. É ver o futuro, sabes, é ler no futuro como uma situação vai ser. Depois, pode resultar ou pode não resultar; neste caso, resultou”. No entanto, a capacidade de Paley de ver o futuro não provém de fontes sobrenaturais, mas sim da experiência. Ao longo das últimas duas décadas, a zona oeste dos Himalaias, as Montanhas de Karakoram, o Hindu Kush e as Montanhas de Pamir são tudo zonas que o francês tem visitado regularmente. Foi lá que começou a trabalhar em fotografia, para uma organização não governamental, em 1999.
A escolha desta zona de especialização, da criação de um “niche” em países como o Afeganistão, o Paquistão e o Tajiquistão também tem uma história. “São regiões que foram estigmatizadas, especialmente desde o 11 de Setembro - e eu comecei a ir para lá pouco antes do 11 de Setembro. Então, para mim, sinto que agora é um dever continuar a ir para lá e continuar a mostrar estas histórias esperançosas sobre a minha experiência lá. Abrir uma janela diferente na perceção das pessoas, em como elas pensam que é a região”.

Desvalorizando o lado estético, Matthieu Paley quer que as pessoas vejam as suas fotografias e pensem nas pessoas retratadas – e que fiquem agradavelmente surpreendidas com a sua simpatia. “Em termos de conexão humana profunda, as pessoas depois descobrem onde foi tirada a fotografia e ficam intrigadas. Quero que percebam que são regiões muito complexas de entender e que não se pode simplesmente colocá-las numa categoria; estes são países que têm uma diversidade incrível de comportamentos humanos e eu quero mostrar isso”.
O francês garante não ter fotografias preferidas. “Sabes, o antigo ditado dos fotógrafos de que nunca nos livramos: a minha fotografia preferida é a última que tirei”. Em poucos dias, estará de regresso ao Afeganistão e ao Paquistão. “O meu coração, enquanto fotógrafo, está na intriga da complexidade social dessa parte específica do mundo, onde há tantas influências – influências religiosas, influências de controlo – que a tornam num sítio fascinante”. Continuará a seguir o seu objetivo de vida: contar as histórias dos esquecidos e dos incompreendidos. Porque, no fundo, “somos todos iguais”.
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