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Em busca pela paz interior

Atualizado: 13 de jan. de 2020

O Ponto e Vírgula esteve à conversa com Tsering Paldron, a portuguesa que encontrou o budismo com 19 anos e, desde então, ensina o caminho da espiritualidade a todos os que o quiserem seguir.


Fotografia: Sofia Matos Silva

Em tempos de ansiedade, há que encontrar espaços de paz. A vida nunca foi tão atarefada e rápida como o é hoje em dia. Passamos os dias num corre-corre, sem sabermos muito bem porque nem para onde corremos. Paradoxalmente, nunca houve tanta procura pelo abrandar do tempo: yoga, meditação, acupuntura, massagens, saunas, mindfulness. Espiritualidade, no fundo, nas suas mais diversas formas.


Para conhecermos um pouco melhor este mundo espiritual, fomos falar com Tsering Paldron, budista há mais de 40 anos que mantêm sessões regulares no Centro Budista do Porto.


O que é, para si, o budismo?


O budismo é uma tradição espiritual, ao mesmo título que o cristianismo ou o hinduísmo. No entanto, o facto de não ser uma religião teísta - ou seja, não se centrar à volta da ideia de Deus e de do relacionamento do Homem com Deus - faz com que exista essa interrogação por parte das pessoas. Porque, pelo hábito, não se consegue conceber uma religião sem Deus. Acho que as caraterísticas do budismo, efetivamente, fazem-no ser um pouco à parte dentro do mundo das tradições espirituais. E, para mim, o budismo é mais como um método de transformação pessoal. Não faz intervir a ideia de uma entidade superior; centra-se exclusivamente no homem, no seu desejo de obtenção da felicidade e no seu desejo de evitar o sofrimento, e de como é que isso pode ser alcançado de uma forma, duradoura. Não é apenas no dia a dia, não apenas conseguir libertar-me deste ou daquele sofrimento, ou alcançar esta ou aquela felicidade, mas libertarmo-nos do sofrimento de uma forma definitiva, transcender o sofrimento de uma forma definitiva, e alcançar a felicidade última. Portanto, é esse o objetivo do budismo, e eu vejo-o como um conjunto de métodos para podermos trabalhar sobre nós próprios em direção a esse objetivo.


Quais são os ensinamentos e as práticas do budismo?


O budismo tem milhares de ensinamentos diferentes, e as práticas também são muito variadas. As pessoas estão mais familiarizadas com a prática da meditação, mas a meditação também não é uma só prática - há muitos tipos de práticas de meditação. Os ensinamentos do budismo, o treino budista, está dividido essencialmente em três aspetos. Um aspeto é aquilo que nós chamamos a visão, mas no sentido filosófico: a visão filosófica da vida, do que é a mente, como funciona, o são os fenómenos, o que é o mundo. Tem o aspeto da ética, de como nos comportarmos, das ações positivas e negativas, relacionadas com a noção do karma, a lei da causalidade, que o nosso bem-estar e o nosso sofrimento são resultado das nossas ações físicas, verbais e atitudes mentais. E a parte da meditação, que é vasta, não é só aquelas duas ou três instruções que agora as pessoas já estão mais ou menos familiarizadas através do mindfulness. Vai muito mais longe; a meditação é realmente o treino de tornar a nossa mente mais flexível, de tornar a nossa mente mais obediente, de sermos capazes de não deixar que a nossa mente fique descontrolada.

O que gostaria de desmistificar – relativamente à meditação e relativamente ao budismo?


Primeiro, em relação ao budismo: o budismo pode ser considerado uma prática espiritual, como uma religião, efetivamente, mas não é uma coisa que colida com outras crenças, por ser essencialmente um método de transformação pessoal. Não é preciso sequer ter uma veia muito espiritual; um cristão pode perfeitamente usar certos métodos do budismo, não tem qualquer contradição. Portanto, acho que aquilo que haveria para desmistificar é que não é preciso converter-se ao budismo. Não é baseado na crença - não é uma tradição dogmática. Não é baseado em dogmas ou em crenças que temos que aceitar de uma forma cega; esse aspeto não existe no budismo. Em relação à meditação, sim, há uns anos atrás, era mesmo um mistério, não é? A gente falava de meditação e ficava tudo a revirar os olhos, ‘no que é que ela se meteu agora?’. Agora já não, porque agora, inclusive, reputadas universidades americanas fazem estudos sobre os efeitos da meditação. Mas, às vezes, as pessoas ainda têm uma ideia um bocado romântica ou alucinada, até, do que é a meditação; acham que as pessoas entram em transe. Agora menos, claro, há uns anos atrás isso acontecia mais. Meditação é simplesmente um treino da atenção. Numa primeira fase, um treino da atenção que visa a que nossa mente se torne mais flexível, a que nós sejamos capazes de a dirigir. Que ela não seja como uma criança caprichosa que, de cada vez que a gente lhe diz que não pode comer um sorvete, ela se atira para o chão e se rebola aos gritos. E isso é uma coisa que também o mindfulness faz, treinar a atenção. Por um lado, isso, e depois, por outro lado, numa perspetiva budista, o treino da atenção tem como objetivo final nós realmente podermos conhecer a natureza da nossa própria mente. Perceber o que somos, mais até do que quem somos - porque essa parte seria mais numa psicanálise ou psicoterapia. Não é perceber quem somos nesse sentido, mas sim o que somos realmente, o que é a nossa mente, o que são os pensamentos e por aí fora.

Fotografia: Sofia Matos Silva

O que é a Bodhicharya?


A Bodhicharya é um conjunto de pessoas de background budista, que se organizaram em torno dos ensinamentos de um lama tibetano chamado Ringu Tulku. Organizaram-se em pequenos centros, grupos de estudo - às vezes não têm um local físico, outras vezes têm. A Bodhicharya tem três vertentes ou áreas de atuação. Uma delas é a cura, no sentido de que o budismo também é quase como uma terapia. Mas não exclusivamente o budismo; tudo aquilo que ajude as pessoas a terem uma vida mais saudável, física e mentalmente - e o budismo faz parte disso. A ajuda, também; há sempre atividades de solidariedade social. E a tolerância, o diálogo com outras tradições espirituais. Portanto, são essas as três áreas: a cura, a ajuda e o diálogo inter-religioso. Claro que a maior parte da atividade da Bodhicharya Portugal, ou qualquer uma pelo mundo fora, é essencialmente vocacionada para o budismo, mas as suas áreas de atuação são estas três.


Qual tem sido o papel da Bodhicharya em Portugal?


Nós não temos grandes pretensões. Eu sigo esse mestre já há uns anos. A determinada altura, nós fazemos um encontro anual com pessoas que vêm de muitos países – da Europa e de fora da Europa - e eu propus que esses encontros se fizessem aqui em Portugal. E por uma questão de facilidade burocrática, criámos legalmente a Associação. Eu já dava alguns ensinamentos e promovia alguns encontros, mas não tínhamos uma existência - não tínhamos um nome, sequer. Aqui em Portugal a vocação é essencialmente do budismo. Claro que diálogos inter-religiosos, já participei em muitos, mas nem sempre em nome da Bodhicharya.


E a União Budista Portuguesa?


A União Budista Portuguesa foi criada há uns 20 anos. Na altura, até foi mais a prever o futuro do que propriamente como uma necessidade do momento. Não havia assim tantos budistas nem tantos grupos budistas em Portugal. A ideia da União Budista Portuguesa, como a ideia de uma união budista seja de que país for, é ser uma associação que representa todos os budistas, de todas as tradições budistas. A gente fala O budismo, mas, na realidade, não existe O budismo. Existe o budismo zen, o budismo ch’an, o budismo tibetano, o budismo teravada, o budismo tailandês…. Todas estas formas de budismo têm todas as mesmas bases, vêm dos ensinamentos do Buda, do Siddhartha Gautama, há dois mil e quinhentos anos, e nesses fundamentos são todas iguais. Mas, depois, pela forma como se conectaram com diferentes culturas em diferentes momentos, foram ganhando cunhos muito diferentes. Portanto, o papel da União Budista Portuguesa é ser um local de encontro de todas essas vertentes, no sentido de uma representação, perante, por exemplo, o Governo Português. Que a União Budista seja o interlocutor de entidades oficiais com os budistas de forma geral. É essa ideia que presidiu à fundação da União Budista Portuguesa, da qual eu fui vice-presidente durante uns anos.


Tem notado, nos últimos anos, uma maior procura espiritual por parte dos portugueses?


Sim. Eu vivi muitos anos no estrangeiro - saí em 1973 e voltei em 1997. Quando saí, ninguém falava do budismo. Quando voltei, tinha acabado de ser publicada uma das primeiras traduções em português de um texto budista - que não fosse um texto zen, já havia um ou dois livros do budismo zen, mas do budismo tibetano não existia nada. E esse livro foi o primeiro que apareceu, até era com a capa daquele filme do Bertolucci, O Pequeno Buda. Existe um Centro em Lisboa, que já existe há muitos anos, mas as pessoas conheciam essencialmente por também ser um restaurante vegetariano, não necessariamente por ser um centro budista. Eu fui para lá viver, na altura comecei a dar os meus primeiros workshops. As pessoas estavam mesmo muito a começar, de maneira geral era tudo muito básico. Desde 1997, nestes 20 anos que passaram, muita coisa mudou. As pessoas estão muito mais informadas, também, porque, entretanto, também se foram publicando muitos livros e já cá veio o Dalai Lama duas vezes. Então, eu acho que tem havido uma procura maior. É também devido ao facto de o budismo se ter tornado uma coisa mais aberta, mais acessível. A Internet abriu muitas portas e o omnisciente Google abriu muita informação. Na última década, as coisas mudaram muito a esse nível. Mas, mesmo assim, continuamos bem atrás de países como a Espanha ou até a França, que já têm centros budistas e lamas residentes há muito mais tempo. Aqui ainda não chegamos a esse ponto. Talvez, também, por sermos um país com menos recursos materiais, e há ainda a questão do caráter do povo português em termos de maturidade espiritual.

Fotografia: Sofia Matos Silva

Que tipo de atividades há aqui no Porto?


Aqui, o Centro Budista do Porto, não é um espaço que pertença à Bodhicharya, mas nós partilhamos. Em termos do Bodhicharya, é essencialmente ensinamentos budistas; às vezes convidamos lamas tibetanos a virem cá. Pontualmente, organizamos conferências e encontros. Tenho também um grupo de pessoas que já me seguem há uns bons anos, e já há uns 9 anos que nos encontramos todos os meses. Aqui no Centro tem aulas de ioga e de meditação (não sou eu que as dou) e esses retiros mensais. E depois há o Summer Camp, que é o nosso encontro anual.

Para quem quiser participar, é inscrever-se, simplesmente?

Sim, é só inscrever.

A vida do século XXI é bastante caótica. Nunca o mundo funcionou com tanta necessidade de reposta imediata e de se estar em cima dos acontecimentos. Considera que o budismo e a as suas práticas seriam um complemento importante neste modo de vida?


Eu acho que sim, desde que as pessoas estejam interessadas – isso é uma condição básica. Vivemos todos numa grande aceleração e a nossa cabeça corre a mil, muito mais ainda do que há uns anos atrás. Quando eu comecei a praticar o budismo há 45 anos, apesar de tudo, o mundo era bastante diferente. O facto de não haver smartphones fazia toda a diferença. Mas, de repente, além de toda a informação e de tudo o que já existe pela interação direta com alguém, como estamos agora aqui a conversar, nós agora trazemos no bolso a possibilidade de nos conectarmos à distância com pessoas que estão do outro lado do mundo, e que no mesmo instante nos mandam uma mensagem e esperam que nós respondamos nesse mesmo instante. Por exemplo, desde que aqui estamos a conversar, o meu telemóvel está no bolso e já vibrou várias vezes. Para além da grande parte da minha mente que está aqui a conversar, a tendência é que uma pequenina parte esteja aqui curiosa de saber o que chegou. Isso não existia antes, não desta maneira tão concreta e tão constante. Claro que a possibilidade de estar aqui e estar a pensar noutra coisa sempre existiu, mas agora tornou-se um vício. Enquanto que eu antes podia estar aqui consigo e estar a pensar que a seguir tenho que ir fazer compras, eu agora, além de poder estar a pensar isso, ainda estou a pensar ‘o que será que chegou’ quando o meu telemóvel vibra. Este ritmo cria uma agitação na mente, que já existia, como é evidente, mas que agora se agravou e se acelerou. A prática da meditação e o tentar permanecer aqui e agora… não é desligar completamente - apesar de isso de vez em quando também ser saudável -, não é ir viver para uma gruta, mas é o ser capaz de compartimentar a nossa mente e ser capaz de realmente puxar a fixa, saber dizer ‘agora não’. A prática da meditação, mas não só. Todas as práticas que o budismo propõe podem ser um complemento, quase que um antídoto para o estilo de vida que todos levamos. Desde que seja isso que as pessoas procuram, que é a parte mais difícil. Porque muita gente que nem conhece o meu background fala comigo, e em conversa calha de eu dizer que sou professora de budismo e que faço meditação e assim, e as pessoas dizem ‘ah que bom, deve ser ótimo, mas eu não consigo’. Portanto, as pessoas até têm noção que lhes faria bem, mas acham que não conseguem. Talvez isso até fosse a coisa que mais valeria a pena desmistificar: aquela ideia que as pessoas têm que não conseguem meditar porque não se conseguem concentrar. Porque a meditação não é afastar os pensamentos, não é ficar sem pensamentos. É simplesmente ser capaz de os deixar vir e deixar ir, sem ir atrás deles; é colocar-se como observador dos pensamentos, focando a atenção numa outra coisa que não os pensamentos. Normalmente, nós ficamos inteiramente absorvidos pelos pensamentos, o pensamento vem e a gente dá-lhe seguimento, o que depois dá origem a outro, e a outro, e a outro. E ficamos enrolados naquele processo. Enquanto que, através da meditação, treinamos pousar a atenção sobre a respiração ou sobre os sons, qualquer outra coisa que nos serve de âncora para não estarmos focados nos pensamentos. Eles vão acontecer, mas o nosso foco é outra coisa, e de cada vez que nos apercebemos que fomos atrás do pensamento, voltamos ao ponto inicial. Não há quem não consiga meditar, isso não existe. Desde que tenha uma mente, consegue meditar. Pode é não ter paciência e isso aí eu compreendo. Realmente, ao princípio é quase desesperante não conseguir ficar nem um segundo sem ser puxado para dentro do pensamento. Mas não há quem não seja capaz de meditar; pode não ter paciência, pode não querer, pode não se dispor a fazê-lo.


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