Tsering Paldron: "não me imaginaria com uma vida mais convencional, não faria muito sentido"
- Sofia Matos Silva
- 3 de jan. de 2020
- 10 min de leitura
Atualizado: 13 de jan. de 2020
O Ponto e Vírgula esteve à conversa com Tsering Paldron, a portuguesa que encontrou o budismo com 19 anos e, desde então, ensina o caminho da espiritualidade a todos os que o quiserem seguir.

Tsering Paldron é budista há mais de 40 anos. Ensina o Budismo desde 1992, é a fundadora da Bodhicharya em Portugal e é regularmente convidada para fazer palestras e orientar retiros, tanto em Portugal como no estrangeiro. Tsering quer dizer ‘longa vida’ e Paldron significa ‘luz resplandecente’.
Como é que uma portuguesa decide do nada partir à descoberta e dedicar a sua vida ao budismo? Falamos com Tsering, assim, para conhecer a sua história de vida e, paralelamente, o universo escondido do budismo.
Como foi o seu percurso pelo budismo ao longo dos anos?
Eu encontrei o budismo quando tinha 19 anos, na Bélgica. Não estava especificamente à procura do budismo, até porque não sabia nada sobre budismo. Estava à procura do sentido da vida. Qualquer coisa que desse sentido à minha vida, porque eu não aceitava a ideia de que a vida pudesse ser só aquilo - comer, dormir, trabalhar, reproduzir-se, morrer. Achava um bocado pouco, não me convencia. Se calhar, se não tivesse encontrado o budismo, acabaria por me resignar. Então, fui para a Bélgica porque tinha vontade de ver o que se estava a passar fora daqui. Naquela altura estava a acontecer a revolução hippie, e nada disso chegava até cá, porque isto foi antes do 25 de abril. Quando fui a uma palestra budista pela primeira vez, foi como se me tivessem aberto de par a par uma porta que antes não existia na minha vida. Eu achava que estava contra a parede e depois, de repente, abriu-se uma porta ali para um universo que eu não suspeitava que existisse. Com 19 anos, não tinha nenhum compromisso, não tinha vida formada, não tinha ambições profissionais, portanto, a partir daí, o principal foco da minha vida passou, de facto, a ser o budismo, o conhecimento de mim própria, a exploração da mente. De maneira que aos 30 anos foi-me proposto fazer um retiro de 3 anos, que é uma fórmula de retiro espiritual proposta no budismo tibetano. É um retiro de grupo; um grupo de pessoas que vão para um centro no meio do campo. Durante 3 anos não saem daí, vão recebendo ensinamentos e praticando cerca de 15 horas por dia de meditação. Não têm contacto com o mundo exterior; há pessoas que vêm, o cozinheiro, o médico, mas as pessoas que lá estão, não só não saem, como também não recebem visitas. No meu caso, fiz o segundo retiro de 3 anos naquele centro em França, depois disso já houve outros, de 3 em 3 anos há um. Pelo que eu ouvi, agora as coisas são um pouco diferentes. É como terminar um curso superior, só que é muito mais do que isso. Porque enquanto a gente estuda na universidade, vai fazendo milhares de outras coisas, sai com os amigos, bebe copos, namora; ali não tinha mais nada, portanto equivale a bastante mais. Foi um marco na minha vida, mesmo; a viagem interior, a descoberta de como funciona a nossa mente quando não tem nenhuma distração, é tudo bastante intenso. Quando o retiro acabou - acabou por ser muito mais de 3 anos, eu já tinha quase 35 - eu comecei a ensinar o budismo. E acho que a minha vida foi inteiramente dedicada ao budismo, sim, a essa prática, a essa descoberta. Primeiro, à prática enquanto praticante e, depois, de há uns anos para cá, à prática enquanto professora. E não tenho o menor arrependimento; pelo contrário, quanto mais o tempo passa, mais eu considero que tive realmente muita sorte. O meu percurso não é banal, acredito que a maior parte das pessoas não quisesse ter um percurso como o meu, mas não me imaginaria com uma vida mais convencional, não faria muito sentido.
Como funcionam as suas sessões?
Eu não dou aulas semanais, é essencialmente ao fim de semana, até porque é quando as pessoas estão livres. Eu organizo ou convidam-me para eventos de ensinamentos budistas quase todos os fins de semana em sítios diferentes; às vezes é aqui no Porto, pode ser em Lisboa, pode ser no estrangeiro. Também organizo aqueles retiros de fim de semana, de sexta à noite até domingo depois do almoço. Têm sido aqui em Braga numa casa de retiros jesuíta, mas por vezes também são perto de Lisboa. Como eu vivi no estrangeiro - e o mundo budista internacional ainda é relativamente pequeno, as pessoas conhecem-se entre si -, tenho muitos contactos no estrangeiro, também através do Bodhicharya Internacional, e sou convidada para ensinar no estrangeiro. Ainda há pouco tempo estive em várias cidades na Inglaterra e depois na Finlândia. Normalmente, ao longo do ano, acabo sempre por ser convidada a ir a algum sítio fora de Portugal. Acabo por estar sempre ocupada, ou a dar ensinamentos, ou a traduzir.
Que temas abordam os seus livros?
O primeiro foi publicado em 2001 e surgiu como resultado da minha experiência a dar workshops de budismo. Naquela altura, o público ainda estava muito pouco informado, e como os workshops e assim passam-se sempre nas grandes cidades – neste caso, em Lisboa -, as pessoas que estão em sítios mais… nem é preciso ir muito longe, é qualquer outra cidade do país. Então achei que poderia ser interessante ter um livro. Um livro tem mais divulgação, as pessoas podem emprestar. Chamava-se A Arte da Vida, agora já esgotou, acabou por ser publicado no ano em que o Dalai Lama veio cá pela primeira vez. Era mesmo um livro de introdução aos princípios básicos do budismo. Depois, passado três anos, publiquei um outro que se chamava A Alquimia da Dor, que também já está esgotado. Era mais sobre conselhos para lidar com o sofrimento e para transformar o sofrimento. Esse teve muito bom feedback… claro que livros sobre o budismo não são propriamente as confidências da Lady Di, nunca vão ser bestsellers, pelo menos os meus e sobretudo se forem escritos em português, porque os portugueses não leem assim tanto. Se fossem edições que fossem publicadas também no Brasil, aí as coisas já seriam diferentes, mas como fica restrito a Portugal, nunca são bestsellers assim de vender milhões. Mas, apesar de tudo, foi um livro em relação ao qual eu tive muito bom feedback. Muitas pessoas me disseram que tinha sido um livro muito importante em momentos difíceis da vida, que as tinha ajudado bastante. Um pouco mais tarde, publiquei um livro para crianças com histórias budistas. Foi sempre o mesmo grupo editorial. Por acaso, é uma das coisas em que eu sinto que tenho um privilégio, ser publicada assim. Eu sei que se me apetecer escrever um livro hoje, tenho quase a certeza de que será publicado. Desse livro para crianças também tive muito bom feedback, mas também já esgotou. E, finalmente, há uns três anos publiquei O Hábito da Felicidade. No fundo, até foi a própria editora que me sugeriu, quando falamos sobre A Alquimia da Dor, fazer uma versão atualizada. Eu achei interessante, porque, entretanto, tinha passado muito tempo e haveria coisas que eu teria dito de outra maneira. A gente vai evoluindo, não é, a minha experiência de ensino foi-se aprofundando. Então concordei, mas depois peguei no texto antigo, comecei a trabalhá-lo e acabei por praticamente reescrever o livro todo. De maneira que a transformação foi tão grande que eu resolvi dar-lhe outro nome, porque, na verdade, já era outro livro. Então, de A Alquimia da Dor passou para O Hábito da Felicidade, e esse foi o último. É sobre como cultivar hábitos de felicidade.
Acha importante introduzir a espiritualidade – ou algo mais - às crianças desde cedo?
A espiritualidade é uma coisa como qualquer outra na vida, nem toda a gente tem apetência.
É algo que se vai encontrando.
É. A espiritualidade, eu não diria, porque, para mim, a espiritualidade já supõe que a pessoa tem aspiração a qualquer coisa que ultrapasse o básico. Agora, há outras duas coisas que sim, eu diria, indiscutivelmente. Dois aspetos do budismo, da espiritualidade, mas com aplicações práticas. Ou seja, um é os valores humanos e a ética. Podemos chamar civismo, no limite. Isso sim, sem dúvida, é algo que se deveria incutir nas crianças desde muito pequenos. A outra coisa é a meditação. Mas a mediação não tem necessariamente nenhum cunho religioso, nem sequer espiritual, num certo sentido. A meditação é um treino da mente, pura e simplesmente. Depois, o que a criança possa pedir, ou mais tarde enquanto adulto, isso aí já é uma busca pessoal. Se quiser aprofundar, se houver alguma noção de que talvez o mundo não seja só o que a gente vê, isso tem que ser algo que venha como uma necessidade da pessoa, e não como uma imposição. Os valores humanos, a ética e a meditação - nem sequer como imposição - seriam algo que valeria a pena transmitir às crianças. O mundo seria certamente bastante melhor.
Agora tem um podcast.
Foi uma experiência que resolvi fazer. Já tenho um canal no YouTube, embora não seja assim um sítio em que eu publique muito. Comecei a fazer vídeos numa altura em que ainda ninguém fazia vídeos, e tive um website, que ainda tenho e mantenho, mas que já criei em 2006, numa altura em que praticamente ninguém tinha - então budistas, nem pensar. E andava a pensar voltar a fazer, mas agora de propósito, porque eu tenho muitos vídeos, mas são conferências. Hoje em dia as pessoas já não têm paciência para ver vídeos muito longos, então a minha ideia era fazer coisas mais curtas. Mas depois, acho que até foi num retiro, eu disse que estava a pensar fazer isto, e houve alguém que sugeriu, ‘mas porque é que não fazes um podcast?’. O podcast é muito fácil de ouvir, a gente pode ter no telemóvel, não precisa de estar a olhar, pode-se fazer download e ouvir em qualquer sítio, mesmo que não tenha uma conexão à internet. E eu nunca tinha pensado nisso, mas achei que se calhar era uma boa ideia. E, na verdade, é, porque, enquanto que o vídeo tenho que vestir uma coisa decente, tenho que ter a luz adequada, tenho que ter um background bom, tenho que estar bem-disposta, o podcast pode-se estar em cuecas para gravar, que ninguém vai saber. Eu faço o meu podcast com um desses gravadores dictafone e um bom microfone. Não preciso de estar num estúdio, a minha casa é relativamente silenciosa, a qualidade de som é perfeitamente suficiente. E realmente é muito mais fácil. Não sei, vamos ver. Se começar a não haver ninguém a ouvir o meu podcast, se calhar também me vou cansar. Mas, por agora, está tudo a correr bem, tem alguma escuta.
Que problemas da sociedade acha que poderiam ser diminuídos se as pessoas tivessem em mente alguns dos ensinamentos do budismo?
Todos. Eu não acredito na política. A questão é esta: qualquer sistema político, económico, social, até pode ser perfeito no papel, ser o mais justo e o mais equilibrado, mas vai ser posto em prática por pessoas. Nós aqui em Portugal, com esta alternância entre a direita e a esquerda, vemos isso claramente. Fazem todos os mesmos erros. Há umas ligeiras diferenças nas políticas, só porque enfim, tem que ser, mas depois na prática, a corrupção, o compadrio, tanto existem de um lado como do outro. E porquê? Simplesmente porque toda a gente põe o seu interesse e o interesse dos seus acima de tudo o resto. Então, pode ser uma monarquia, uma tirania, uma ditadura, um governo de esquerda, um governo de direita, um governo de centro, seja o que for, se as pessoas forem corruptas e egoístas, nenhum desses sistemas… quer dizer, há sistemas piores do que outros, sem dúvida, não estou a dizer que não. Mas, em última análise, se não houver uma transformação das pessoas, nada vai realmente mudar. Então, o que eu acho é que todos os problemas do mundo, todos mesmo, sem exceção, desde os problemas de relações dentro da família, entre o casal, entre pais e filhos, no ambiente profissional, a nível da economia, da política, da saúde, em todo o lado, se os indivíduos que estão nos postos de responsabilidade, se essas pessoas fossem um pouco mais capazes de se colocar no ponto de vista do outro, o mundo seria uma maravilha. A maior parte dos problemas que existem no mundo são fabricados pelo ser humano. Até as próprias catástrofes naturais o são - não de uma forma tão direta, mas de forma indireta acabam por ser. E tudo o resto é criado pelo homem. Então, o mundo seria incomparavelmente melhor se um quarto da população mundial - já nem peço metade - fosse capaz de se colocar no lugar dos outros.

Esta pergunta é muito abstrata: chegou a encontrar o sentido da vida?
Quando eu me questionava sobre isso, eu queria encontrar assim uma coisa que coubesse numa frase – ‘o sentido da vida é:…’. E obviamente, quando eu descobri o budismo, senti que por ali eu talvez fosse capaz de responder a essa pergunta um dia. Mas a verdade é que nunca mais me coloquei a pergunta. Ao longo dos anos, as coisas foram ocorrendo, a minha visão do mundo foi mudando e eu nunca mais me coloquei essa questão. Mas, no outro dia, li uma frase atribuída ao Dalai Lama (a gente já sabe que nem tudo o que vem assinado é de facto dele, mas quer seja ou não) e achei-a interessante. Dizia que ser feliz e ser útil é o sentido da vida. E para mim faz bastante sentido. Porque, efetivamente, se nós formos a pensar, na prática, no que é que todos queremos, a gente não quer saber do sentido da vida, a gente quer é ser feliz. Ou sentir-se bem, evitar o sofrimento, queremos o bem-estar. Já se sabe que para certas pessoas, aquilo que elas projetam como bem-estar poderá ter um cunho mais material, para outras será mais sentimental. Mas, seja qual for a tua ambição ou a maneiras como defines aquilo que achas que te poderá trazer bem-estar, aquilo que todos queremos é estar bem. E, depois, o ser útil, eu acho que aí também intervém. A maior parte das coisas que eu acho que me vão trazer bem-estar não são prazeres solitários; até posso estar num sítio maravilhoso, mas se estiver sozinha, se não tiver ninguém com quem conversar e com quem partilhar, também não estou muito bem. Então, aquela coisa de ser útil, é nesse sentido, no sentido de ser útil para alguém, relacionar-me com alguém, saber que a minha vida, que a minha existência conta para outra pessoa e vice-versa, não é? Portanto, acho que isso resume bastante bem. Qualquer coisa que a gente faça que seja para os outros, dá-nos sempre muito mais satisfação do que as coisas que fazemos exclusivamente para nós próprios. Esse sentimento de ser útil, de fazer alguma coisa para melhorar o bem-estar de alguém, acho que é fundamental para sentirmos que a nossa vida tem sentido.
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